sexta-feira, 30 de abril de 2010

Para o meu Pai

... que soube ensinar-me a escutar esta aigle noir numa viagem que fizemos há 20 anos.
Na cidadezinha portuária de La Rochelle um cartaz anunciava o concerto.
Uma multidão de jovens apaixonados gritava Barbara !.
E ela abraçada às suas plumas negras.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

terça-feira, 27 de abril de 2010

No Porto

O dia começou cedo. Tinha de estar no Porto às 11h. Saí de Lisboa às oito, mas apanhei um engarrafamento tramado na entrada da A8 que me rebentou as expectativas da pontualidade.
Perdendo quase uma hora em pára-arranca, tive que acelerar. É possível fazer Lisboa-Porto em duas horas. E parar nas portagens...
Quando cheguei, estava tudo à minha espera. Levei logo uma rabecada da funcionária, mas respondi-lhe que para a próxima lhe pedia a ela para trazer o carro.
Pedi desculpas pelo atraso e fiz o que tinha a fazer. Almocei num restaurantezinho da Foz e fui para o Hotel. A cama tinha o meu nome, de modo que adormeci. Acordei com a televisão a berrar a inquirição de um administrador da TVI na Comissão de Inquérito do Parlamento sobre o negócio com a PT. Pesadelo do caraças.
Tomei um duche frio e pus-me na rua. Calor brutal.
Depois de ter passado grande parte da tarde a divagar pela cidade feito perdido, fui a Serralves onde me pus remansado a beber um café e a fumar um cigarro. Ah, vida boa !, pensei.
Um salto na livraria do Museu para ver as novidades artísticas: fotografia, cinema, pintura e pop design.
Saí já eram oito.
Agarrei no carro e fui novamente sem destino. Pela Marginal onde, àquela hora, se vêem os namorados e malta a fazer jogging. Atrás, o mar. Aos saltos.
Cheguei à Baixa. Como estava quase tudo fechado, subi a 31 de Janeiro e, pela Rua de Santa Catarina, fui dar ao único sítio possível: a Fnac. Óbvio. Entretive-me a ver uns discos alternativos e comprei  um livrito com mensagens curtas e apelativas: "Whatever you think, think the Opposite". Bom título.
A noite estava violenta de calor. Não sabia onde é que havia de acabar o dia.
Telefonei. Do outro lado disseram-me: "Vai ao Carteiro!"
Fui.
O melhor momento do dia !
Fica num larguinho muito simpático e sossegado. Só o conhece quem o conhece. Mas é um largo com nome de rua, uma rua com um nome bestial: Rua do Senhor da Boa Morte, nº 55.
Entrei numa casinha. "O Carteiro" é uma casinha.
Lá dentro, uma mesa num canto. Escolhi a que ficava à beira da janela. O Nuno, que é o dono do restaurante, veio logo trazer umas entradas. Queijo fresco apimentado e no azeite. Broa de Avintes, acho. Levantou o outro prato que estava na mesa, mas deixou a cadeira vazia em frente à minha.
Pedi o folhado de caça com queijo derretido e bacon. Especialidade. Veio com migas, uma mãozinha de grelos e castanhas. A minha boca completamente acordada ! Um copo de vinho da casa.
E fiquei ali, com o olhar perdido na noite, a apanhar o arzinho fresco da rua e a fazer uns esquiços no caderno que levava comigo.
O Nuno trouxe mais um copo. Viu que gostei. Pedi a sobremesa e fui para o alpendre fumar um cigarro.
Vendo-me ali descontraído e sozinho, o Nuno veio fazer-me companhia. Bate papo formidável. A vida dele (já tinha trabalhado em Lisboa), a vida no Porto, o Benfica quase campeão ("este ano o título fica bem entregue!"), a vida em Portugal, a vida.

Só não percebi bem o alinhamento musical. Em geral tocava um som calmo, bossa nova, cenas tipo Feist, mas, de repente, no meio daquilo, dois momentos sublimes: New Order e, quando estava para me ir embora, "Love will tear us apart" dos Joy Division.
Fiquei mais um bocado.

domingo, 25 de abril de 2010

sábado, 24 de abril de 2010

Cadernos Marroquinos - 3º Dia

Levantámo-nos cedo no International Youth Hostel de Fés. Retemperados e ansiosos. Dois pães pequenos e um café com leite para a rota de Erfoud.
O calor começou cedo a apertar. Abril ia desaparecendo para nos mostrar Marrocos.
Foi um dia longo.
As pistas de asfalto em Marrocos levam o dobro (ou triplo) do tempo a fazer. Como só dão para carro e meio, sempre que nos cruzávamos com alguém em sentido contrário, tínhamos de meter os pneus do lado direito para a berma. Inicialmente, éramos nós que nos esquivávamos. À medida que fomos ganhando confiança, deixámos de o fazer. Os outros que se enfiassem na terra batida. Eram duelos da estrada. Ganhava quem tivesse mais sangue frio.
Por isso mesmo, são caminhos que têm de ser trabalhados, merecidos. Os escassos 472 kms desse dia foram o tributo para quem quis atravessar os montes e vales que levam a Erfoud.
Só noite feita lá chegámos, depois de passarmos pelo Midelt, Er Rachidia e pelo fabuloso Oásis do Ziz. Ziz que é rio .
O Oásis do Ziz... Nunca tinha visto nada assim. Deixei a vista perder-se naquele denso palmeiral que se estende imenso num tapete pelo desfiladeiro do Ziz abaixo.
Nunca um rio fez tanto sentido ! Como na aridez e secura supremas pode nascer, milagre do Alto Atlas, um fiozinho de uma água tão pura e doce que abençoa tâmaras e faces refrescadas.
E uma menina, que acompanhava o irmãozinho já pastor, deixou-se fotografar.


Mesmo quem não quer, nesse momento, acredita em Deus !

Seguimos viagem.

Rashid e Mustafa
Um de turbante azul, o outro com um branco.
Apareceram feitos do nada, feitos de pó. Parecem brotar do chão. Mustafa fazia o jantar. Rashid, depois, levar-nos-ia para o deserto de Merzouga. Tudo entre amigos.
Fomos com eles. O Mustafa preparou uma kalia apuradíssima (carne de borrego cozinhada com especiarias e azeite), um kebab apimentado e ovos escalfados, acompanhados, como é de lei, de um thè a la menthe. No final, um melãozinho doce.
Para retribuir, fomos buscar umas garrafas de “Borba” ao porta-bagagens. Os olhos deles brilharam. Mustafa, como não tinha um saca-rolhas, aqueceu o gargalo, encostou uma das garrafas à parede e sacudiu-a em movimentos secos para a rolha saltar. Custou ver o vinho ser agitado, mas resultou. A seguir, sentados, o copo ia rodando por todos. Eles bebiam de “penalty”. Chorávamos o desperdício. Mas fossemos lá explicar-lhes isso ! Em vez de o deixarem escorrer pelas papilas, engoliam-no. Como o álcool é crime e pecado deve rapidamente ser despejado no estômago, longe de olhares inoportunos. E conversámos toda a noite.


A seguir viria a história. Acho que foi o João Tiago quem primeiro desconfiou da moral daqueles homens.
Queriam à viva força levar-nos dali para o deserto. Não chegámos a perceber se estavam apenas com fito no negócio e nuns cobres a mais, ou se pretendiam outra coisa.
Diziam que já tínhamos feito um trato. Como ninguém tinha dito que sim, estranhámos a pressa. Para eles, porém, já era certo. Tinham-nos dado de comer. Agora era o resto. Tínhamos que ir para o deserto. Dois ou três de nós até queriam alinhar. Ao verem desacordo no grupo, tentaram jogar-nos uns contra os outros, dizendo que quem não quisesse que não viesse, que não era bem-vindo.
Nessa altura, parámos todos. Sem cerimónias, dispensámos qualquer serviço. Enfiámo-nos na Peugeot e fomos embora. Ainda sentimos um pontapé na porta da 505. Alguém viu um punhal.


Partimos madrugada fora rumo a Ouarzazate. Sempre a rodar ao volante para irmos, ainda que aos soluços, descansando um pouco.
Entretanto, parávamos sempre que víamos algum movimento. Encostámos junto a uma mesquita erguida no vazio. Ao longe, parecia haver festa.
Fiz então o meu primeiro negócio nesta terra de berbéres, beduínos, tuaregues e nómadas. Só eles é que se distinguem. Pelo credo ou local de nascimento.
Meti conversa com um sujeito chamado Barí Benaissa, dono de um balcãozinho de Fantas e Coca-Colas na estrada para Ouarzazate. Conhecia bem os portugueses do seu tempo de emigrante em França. Sugeri-lhe que trocasse a cassete que estavam a ouvir, de vozes vibrantes e alaúdes islâmicos, por uma dos “Resistência”. Aceitou, por entre gargalhadas. Daí em diante só a música alegre do Benaissa se ouviria no velho rádio da Peugeot.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Show me, show me, show me how you do that trick...

Não conheço os Cure desde sempre. Surgiram nos anos 80 e, nessa altura, os sons ainda demoravam um tempinho a chegar cá.
Os Cure não eram nada alinhadinhos. Robert Smith era uma personagem meia estranha, amaneirada, quase andrógino. Música que só era ouvida em certos locais. Não eram os Smiths, os Cock Robin, os Tears for Fears ou Lloyd Cole. Não tinham nada com os Duran Duran, os Spandau Ballet ou os A-Ha, Housemartins ou INXS. Muito menos com os Dire Straits.
Quando, em Outubro de 1987, foi lançado "Just like Heaven", do álbum "Kiss me, Kiss me, Kiss me" eu tinha 9 anos, quase 10. Começava a descobrir a música. Ouvia o que passava na rádio e lambia os vinis dos meus pais. Não tinham Cure. Óbvio.
Até que em 1992 um primo que tenho no Porto, oito anos mais velho que eu, ofereceu-me o "Wish" dos Cure. Foi um dos meus primeiros CD's e uma novidade total. Lembro-me que fiquei a olhar para a capa do disco um bom par de horas. Feito parvo. Espantado por ter tido a honra de receber um disco de uma banda que os meus amigos não ouviam. Claro que, nessa altura, já os conhecia, mas a partir daí fui recuperar os sons para trás.
Hoje, no Porto, lembrei-me destes tipos. No "Café Candelabro", uma miúda (para aí de 18 anos), parecia saída da London 80's. Penteado e roupa. Provavelmente a estudar Belas-Artes.
Embora no Café tocasse um gigantesco blues, guitarras a apertar acordes e solos tremendos, este foi o som que pairou na minha cabeça. Um grande som.

domingo, 18 de abril de 2010

Cadernos Marroquinos - 2º Dia

Ceuta. Enclave espanhol.
Finalmente o Norte de África.
Na fonteira, uma rigorosa inspecção. Aos passaportes e passageiros, aos veículos, às mercadorias e bagagens.
De desconfiado capote azul e sobrolho carregado, as autoridades marroquinas da fonteira conduzem um pequeno inquérito. Reclamam documentos, papéis, licenças e autorizações. Fazem perguntas. O que vamos fazer no país. Onde vamos ficar. Por onde vamos passar. Para que é a máquina fotográfica. Por que levamos uma rapariga connosco. Descobrem umas “Playboy” na minha mochila. Perguntam para que são. Censuram. Demoram-nos. Ao cabo de umas boas duas horas, tudo em ordem. Podemos seguir.
Mas isto só para quem quer entrar de carro. No cimo do monte rente à fronteira, desfilam centenas de pessoas por dia sem qualquer interpelação, sem qualquer controle. Levam mulas, filhos, arroz, água, artigos de contrabando, tabaco.
Arrancámos para Chefchaouen, a cidade azul. Azul das casas. Casas polvilhadas de um maravilhoso azul cobalto. Fica no sopé das montanhas do Rif. Chefchaouen que (dizem alguns) significa “vê as montanhas”.
Parámos.
Num lugar estranho e nebloso bebemos o primeiro chá de menta. Comemos uma carne picada que para lá tinham. Quiseram que experimentássemos o kif marroquino. Aceitámos. Ficámos a saber que esta é a principal região do país produtora de cannabis.
Vendo-nos portugueses, uns vendilhões, de orelha atrás da porta e aspecto duvidoso, vieram falar-nos, de Cascais, batata-frita, Benfica e Sporting, Tahar e Saber.
Até aqui a chuva perseguiu-nos. E, talvez por isso, o Norte do país faz lembrar o Minho ou as Astúrias. O Alentejo e a Andaluzia são muito mais secos e agrestes que o verde das montanhas que rodeiam estes ares.
E continuámos. Para Fés.
Já não víamos vivalma há algum tempo.
A meio caminho parámos para comer. Numa tenda à beira da estrada, onde nos pudemos abastecer de gasóleo, água e outros mantimentos.
Cá fora, dois enormes bocados de borrego pendurados. Cobertos de moscas. O dono do local deu duas palmadas na carne para as sacudir e enxotou os cães escanzelados que esperavam as sobras. Cortou, temperou e grelhou a carne. Pelo meio deixou cair uma ao chão. Pas de problème! Serviu-nos com pão torrado. A fome ignorou o resto.
Voltámos para a carrinha.
Iamos rodando o volante, mas eu é que tive a sorte de chegar a Fés a conduzir.
Fés, a primeira das cidades imperiais. Eram seis da tarde. Atrás de mim, o Fuller reclamava. Queixava-se do tratamento à caixa de velocidades.
Abrandei à porta da cidade. Procurava com os olhos orientar-me. Um sujeito de turbante fez-nos um gesto com o dedo ameaçando cortar-nos as cabeças. Senti o sangue gelar. Eu e o Fuller, porque os outros não viram. Pelo sim, pelo não, dei meia volta. Para outra porta.
Mal entrámos na cidade, já tinha um carro na minha direcção. O outro vinha completamente em contra-mão. Só tive tempo para travar a fundo e esperar quieto que ele se desviasse. Desviou. Passei a mão pela testa onde me escorria um fiozinho de suor.
Chegava a noite. Procurámos alojamento e deixámos os pés levarem-nos pelo dédalo da linda medina de Fés. Muito comércio e um movimento estonteante, confuso e desordenado naquele emaranhado de souks. Todas as horas são boas para se fazer negócio em Marrocos. Tudo depende do que se tem para oferecer.
As mulheres são um elemento quase circunstancial. Pairam, cobertas pelo tchádor e pelo longo hijab. Numa lógica própria e condizente, limitam-se a comprar figos secos, tâmaras e pão. Regateiam. Andam aos pares, com os filhos pela mão, quase sempre atrás dos maridos, mas sirandando de canto em canto como se dançassem.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

terça-feira, 13 de abril de 2010

Untitled

Não sei porque é que ela desviou a cara. Porque é que se foi embora. Porque é que sorriu complacente quando lhe pedi que me anestesiasse também. Ao menos meia dose. Alguma coisa. Afinal, o puto só tinha três meses e iam abrir-lhe a cabeça. Então uma droga qualquer. Têm tantas... Armários cheios. Foda-se, não estou a brincar ! Não precisam de me espetar, nem avisar. Resolvam lá isto. Não são médicos ? Não fazem curas ? Não acalmam a dor ? Resolvam lá isto. Porque é que se vai embora ? Porque é que desvia a cara ? Porque é que sorri assim, ao de leve, quase querida ? Porque é que não me anestesiam também ? É só por umas horas. Depois volto. Vá. Despachem lá isso. Não ? Porquê ? Porque és beirão. Ah, é isso. Hã ?
Como ? Nasci em Lisboa. E nunca vivi noutro sítio. Não me venham com as minhas próprias tretas. Beirão... uma ova ! Dêem-me é qualquer coisa. Calo-me logo. E saio do caminho. És beirão. E o beirão finca os dentes numa  pedra e aguenta. Aguenta. Estou farto de aguentar. Tenho aguentado muita merda, minha Senhora. Isto não. Não quero. Vá. Ninguém tem que saber. Arranje-me só um cantinho e eu vou para lá. Não chateio mais. Não pode ser. Os outros também aguentam. Os outros ? Que outros ? Quero lá saber dos outros. Eu é que preciso. Ei ?!  Porque é que se vai embora ? Espere... Não me está a ouvir ? Espere !

Miúdo,
Daqui a umas horas lá te levo novamente. Vão concluir o que começaram. Não tenhas medo. O pai está lá. Não peço drogas. Bem, talvez com os olhos. Não. Não adianta. Não dão ao pai. Não sabem como custa, como dói fundo, entregar-te. A Deus. Sim, a Deus. A eles. Tu, que és minha responsabilidade. Ver levarem-te. Pequenino demais para aquela cama. Tu, que és a minha responsabilidade. Como se o pai entregasse a sua responsabilidade quando escalou o Pico nos Açores... Apesar de lhe doerem tanto os joelhos que já estalavam, e por mais que as alças daquela mochila lhe rebentassem as costas, quase enterradas na carne...
Puto, o pai está lá. Sou teu e tu és meu. Para sempre. Tudo pode mudar. Excepto isto.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Cadernos Marroquinos - 1º Dia

Não me lembro quem é que teve a ideia. Provavelmente foi a meio de um jantar ou depois de uns copos. "E que tal Marrocos ?"
A malta do costume alinhou logo.
Éramos seis, depois sete (o Ordep trouxe a namorada), e havia uma velha carrinha verde petróleo, a maltratada Peugeot 505 do Fuller. De revisão feita e extensão de seguro.
Combinámos tudo à pressa. Eu e o Jack London ainda tínhamos um exame de Processo Penal para fazer. Os outros iam apanhar-nos à Faculdade e partíamos.
Uma da tarde. O Fuller aparece à hora combinada. A buzinar e a fazer piões no meio do parque de estacionamento da Católica. Foi uma entrada em grande. Tudo a olhar.
Largámos Lisboa como se fosse pó, a Páscoa, os códigos e os colegas que ainda dissertavam sobre as perguntas do exame. Era o último ano do curso. Alguma coisa puxava para o Sul. Para o calor. Para a areia. Para os homens de pele escura e bigodes cheios. Para trás ficavam os primeiros meses do ano 2000. Mas depressa soubemos que deixávamos tudo o que conhecíamos.
Pegámos nas mochilas, saltámos para a carrinha e arrancámos. “Vamos lá conhecê-los, rapaziada!”
O Mahgreb.
Ninguém sabia bem o percurso. Nas mochilas, algumas roupas, enlatados, mapas, lanternas, água e cassetes para o rádio da 505. Rolling Stones, Beatles, Ben Harper, Pearl Jam e, claro, Pink Floyd e Leonard Cohen para a noite. Um par de botas, meias quentes, o meu blusão de cabedal para enganar o frio do deserto, uns cadernos para escrever, canetas. O Ordep levava a máquina fotográfica com rolo para slides.
Não perdemos um minuto. Era a primeira vez.
Metemos gasolina e apanhámos o caminho para Beja. Vimos as placas de Aracena e Sevilha. Não parámos. E a 505 só dava 100.
Chegámos a Algeciras às dez da noite. O conta-quilómetros dizia 620. Boa média, pensámos.
Às dez e meia partia um ferry para Tânger. Comprámos logo os bilhetes. Mas não embarcámos. Demasiada pressa. Embora fosse Espanha, já não estávamos na Europa da vertigem. As coisas ali cantam noutro ritmo, com outra calma. Há que negociar, esperar. O dinheiro que sai depressa do bolso não é aceite e quem entra a correr é porque foge.
De maneira que tivémos que encontrar jantar. Uns bocadillos rellenos de qualquer coisa num pardieiro mal amanhado e umas cervejas espanholas.
Só saímos às seis da manhã. Para Ceuta. Até lá dormimos todos (quem conseguisse) nos bancos coçados da 505. Pus-me de cabeça para baixo para arranjar espaço. Claro que não preguei olho.

domingo, 11 de abril de 2010

O Cabelo das Árvores

Helsínquia, Setembro de 1999.
Foi a primeira vez que a vi.
Nos países do Norte, Setembro traz a ruska.
Ainda não é Outono, mas em três/quatro dias as árvores deixam de estar cobertas de folhas verdes que passam quase instantaneamente para o amarelo e, logo, o vermelho. São três/quatro dias. Não mais. A natureza diz que vem o Outono, mas ainda não é. E por ser tão freneticamente rápido as folhas não caem. É um fenómeno incrível. Os plátanos e as bétulas completamente tingidos de ruivo. E é lindo assistir a isto. Parece um mundo novo. E como é único não tem tradução. É a ruska.
Passaram 10 anos e foi preciso ser Primavera para eu voltar a ver uma ruska. A ruska.

sábado, 10 de abril de 2010

No Sud-Express

Partíamos, invariavelmente, da estação de Santa Apolónia. O destino era o resto da Europa. A preparação começava meses antes em casa uns dos outros onde traçávamos um esboço de um primeiro plano da viagem. Cada um tentava puxar para o seu lado do mapa.




Chegávamos à estação em cima da hora. Não havia check-in. Na estação, os pais, irmãos e namoradas vinham despedir-se. Íamos estar um mês fora e by our own. Era o tempo das férias grandes e tínhamos 17 ou 20 anos.



À hora certa, sempre às 17h45m, o chefe da estação fazia soar o apito. Nos altifalantes anunciava-se o destino. O comboio soltava os seus primeiros movimentos e largava os vapores do motor. Pegávamos nas mochilas - carregadas até ao limite -, dávamos um último beijo e entrávamos no Sud-Express, o comboio do Sul da Europa, o mais romântico dos comboios do Sul.
Escolhíamos um compartimento jeitoso, que desse para cinco ou seis, e instalávamo-nos. Rapidamente alguém sugeria uma volta ao comboio. Podia ser que encontrássemos a companhia de umas miúdas simpáticas ou simplesmente… boas. Em grande excitação dirigíamo-nos para o bar. Pedíamos umas cervejas e começávamos a falar com malta como nós: alemães, espanhóis ou italianos. O destino era Espanha. Tinha que ser Espanha. Madrid ou San Sebastian, dependendo do trajecto ser para o Leste ou mais para Norte. A primeira noite era sempre eléctrica. Normalmente não pregava olho. A partir daí, o cansaço não permitiria noites em branco. A meio da noite, numa estação estranha e sem referências, fazíamos umas sopas instantâneas na panelinha que levávamos ou partilhávamos uma erva tranquilos.
Chegar a uma estação no dia seguinte é uma sensação única. Já não se fala português e sentíamos que tínhamos cumprido a primeira etapa. Definíamos rapidamente se nos interessava ficar aí um dia ou se seguíamos a rota. Normalmente não perdíamos tempo. Queríamos pôr-nos a milhas o mais depressa possível. Espanha e Itália são países magníficos, mas queríamos mais. Recordo especialmente nos balcãs Dubrovnik e uma viagem complicada a Sarajevo. Por baixo das pontes ainda de pé, o rio Neretva. Budapeste era a capital europeia do sexo. Na Polónia, as miúdas abriam-se ao ocidente. Em Santorini e Ios aprendemos o significado da expressão “festa nas ilhas gregas”. Certa vez, chegámos aos países da Escandinávia. A seguir viriam Helsínquia e a báltica Tallin, onde a cada dia que passava a temperatura baixava um grau e onde os finlandeses se abasteciam de bebidas alcoólicas. Que pena São Petersuburgo… Mais para baixo, já de regresso, Amesterdão apresentava-se com a sua cultura própria e os magic mushrooms. As histórias eram imensas. O som das partidas, insuperável. Comíamos mal (às vezes apenas o molho de uns enlatados) e dormíamos pouco. A Lisboa chegávamos sempre mais magros. Mas tínhamos histórias. Histórias que nos valeram, muitas vezes, um beijo de uma rapariga. Histórias que hoje, todos mais velhos, alguns casados, recordamos com a saudade dos bons amigos.



Este texto é uma homenagem ao Sud-Express, aos comboios, mas sobretudo a todos os meus companheiros de viagem com quem tive a honra de viver os inter-rails da minha vida.

Os irmãos Dalton

Uma anedota não se explica.
O meu amigo NC, que é tão genial quanto louco, disse-me que não a compreendia bem. Que não percebia os critérios da coisa.
Como não sei se nesse momento falava o brilhante, se o indecifrável NC, não te deixo sem resposta, pá. Comigo nunca se fica sem resposta. É feitio.
Uma anedota, mesmo má, não se explica.
Este post é uma anedota. Fraquinha, bem sei, mas em tempo de fome é o que se arranja, e a mim sempre me ensinaram a não deixar nada no prato, a sugar o tutano e outras coisas.
Este post é ficção. E a culpa é do monsieur Goscinny.
Não é nada, que ele não sabia a pandilha que para cá viria.

É uma anedota porque já não adianta falar a sério.
Mas o NC não percebia.
Cá vai.

Estes são os irmãos Dalton, conhecidos outlaw do faroeste.
São um bocado toscos e fazem-nos rir. Mas roubam. Ou querem. Diligências, alguns comboios e já tentaram Bancos. Quase sempre são apanhados, porque, como disse, são um bocado toscos. Ou deixam cair os lenços que lhes deviam tapar a vergonha, ou saem para um assalto sem os tiros nos colts, ou arranjam umas pilecas para fugir. Enfim, é um fartote. Nunca lhes acontece nada de grave porque divertem a malta. Até podem ir para a penitenciária de Poker Gulch, mas é tudo, o que só evidencia que este post é mesmo ficção.
À frente da pandilha vem o Joe.

Joe é tramado. Tramadinho. Irascível, detesta que se metam com o tamanho dele.
Como é pequeno, pequenino, desata logo aos berros quando o contrariam. Ele é que sabe, logo “pouco barulho”.
Como é o chefe do grupinho, desconfia de todos e acha que só lhe querem fazer mal. Quando vai ao saloon deixa um dos irmãos lá fora, diz a outro que veja quem está na casa de banho e manda o terceiro perguntar quem esteve antes dele ao balcão. Sempre com um olho na sua própria sombra. Tem um sonho: ser dono de uma tipografia.

Jack é um verdadeiro “brother”. Nada faz que desagrade ao mano. Diz-lhe sempre que sim e é o primeiro aparecer quando vem borrasca. As ideias nunca partem dele, mas ele não se importa. Se o Joe diz para se assaltar a velhota que atravessa a rua, ele vai. Até pode depois levar com a sombrinha da senhora, mas tentou. E de não tentar nunca o podem acusar. Está sempre com o Joe. E sempre, é mesmo sempre.

William é quase um desperado. Tem sempre o 6 tiros preparado. Mas está entre o Jack e o tonto do Averell. O que tem as suas coisas. Porque se, por um lado, tem um exemplo de fidelidade no Jack, como ouve muito do que lhe sopra o Averell, perde facilmente as estribeiras. É quase sempre o primeiro a sacar e desata aos tiros com facilidade. Quando morde não larga. Não sabe é bem por que o faz.

Averrell é o último deste animado poker. Vem atrás, mas é importante na estrutura. Não fosse o mais alto dos quatro. Averrel quase nunca percebe o que se passa à sua volta. Pelo menos é o que parece, porque quando é apanhado diz que não fala de calhandrices. Se o Joe disse que era assim, é porque era. Mas não pensem que é como o devoto Jack. Só há uma pessoa que ele ama mais que o Joe: a Mamma Dalton.

Como disse, este post é uma anedota e as anedotas não se explicam. Num país a sério, com uma oposição honesta, com imprensa verdadeira, sem comprometidos, não seria preciso dizer mais. E não falo de cursos ou faculdades, de assinaturas em projectos ou das tendências amorosas de alguém. Mas num país a sério a vergonha já tinha mandado alguém sair. Para fugir ao nojo, a imprensa já o tinha exigido. Por pudor, os Tribunais funcionavam. A tempo. Havia consequências e resultados. Como vivemos uma anedota, isso não acontece. Rimos.

Hi Fi

Para um tipo como eu, que continua sem querer saber onde se fazem os downloads de músicas, comprar um disco é como comprar um livro. É um rito.

Um gajo tem de ir à loja. Olhar, percorrer os corredores, ver vários. Pegar em vários. Ouvir, finalmente. Experimentar, como se os provássemos. Vários. Ver as capas, capas históricas, míticas, tirar o livrinho para fora, conhecer a história do disco. O ano do disco. Onde é que eu estava (se já estava). O nome do grupo, o nome dos elementos do grupo. De onde vêm, as influências, saber tudo. Ter referências. Saber os nomes das músicas. Perceber as letras. Perceber em que pensam.
Escutamo-los, bem, devagar, connosco, em silêncio. Não é uma coisa qualquer. É uma cerimónia.
Depois, quando já os compreendo, quando já são meus, andam comigo. Nessa altura são eles que me chamam e escolhem quem eu quero ouvir, conforme me vêem. Conforme me sentem.



Para um tipo como eu os discos são como filhos. Sabemos os nomes de todos. Quando os pomos na prateleira, não vão para a prateleira. Ficam ordenados alfabeticamente e por secções: pop para um lado, jazz e blues para outro, e a étnica. A ópera e a sinfónica num quarto canto. E ninguém lhes mexe. Só se pedir. E depois volta a pôr. No sítio. Não se misturam as coisas, nem se diz “onde é que pus? Sei lá !”



E são todos iguais, mas há uns mais iguais que outros. Há uns que se mexem. Sozinhos. Que vão deslizando da prateleira até a lombada ficar ligeiramente de fora, à vista, mais à vista.
Neste momento, neste exacto momento, o disco que deslizou mais do que os outros foi este. Já não era ouvido há algum tempo. Tinha saudades minhas. Sobretudo esta.

"Did you ever wake up to find

A day that broke up your mind
Destroyed your notion of circular time

Its just that demon life has got you in it’s sway
Its just that demon life has got you in it’s sway

Aint flinging tears out on the dusty ground
For all my friends out on the burial ground
Cant stand the feeling getting so brought down

Its just that demon life has got me in it’s sway
Its just that demon life has got me in it’s sway

There must be ways to find out
Love is the way they say is really strutting out

Hey, hey, hey now
One day I woke up to find
Right in the bed next to mine
Someone that broke me up with a corner of her smile, yeah

Its just that demon life has got me in it’s sway
Its just that demon life has got me in it’s sway
Its just that demon life has got me in it’s sway
Its just that demon life has got me…
Its just that demon life has got me"

(Sway, "Sticky Fingers", Abril 1971)

O Brilhante Navegador*

Há uma invenção muito querida. Muito útil, simpática e necessária.



Talvez por já não sabermos às quantas andamos venderam-nos o GPS (Geo...(porra?)... System). Venderam-nos não, porra ! A mim não. Nunca o comprei. Nem quero.



O GPS é porreiro. É porreirinho. É ridículo.



É um quadradinho giro, com um ecrã de muitas cores, linhas e bolinhas. É móvel e é moderno.



Instala-se no carro, num aplique bonitinho, pede uma senha e... zás: estamos na morada certa. Tudo se localiza, tudo é localizável, tudo é traçável, tudo se sabe, tudo se encontra. É um satélite. É bestial !



Fala, diz onde estão os radares da polícia, dá notícias e, desconfio, até deve dar música. Bestial !

O GPS é uma invenção impecável, porque dantes não se encontrava nada. Um gajo queria ir daqui para o Porto e népias. Um gajo queria saber onde era a casa nova de um amigo ou um bar recém aberto e nunca lá chegava. Era tudo anónimo. Tudo um gigantesco segredo. Não havia mapas, setas, direcções e muito menos o boca-a-boca. Não havia raparigas bonitas, nem conversas que começavam por aí. Não havia perguntas a um grego que responde em grego o caminho para a praia de Manganari. E percebemos !
E, portanto, não havia Roma. Quanto mais a surda da Islândia. Se um gajo se metesse numa aventura dessas, o mais certo era acabar dentro de um vulcão e ser cuspido quando ele quisesse.



O que tem piada é que eu nunca me perdi.



O que tem piada é que quando eu e um amigo atravessámos o deserto de Spregisandur, que fica entre dois glaciares, percebemos o sentido da rota. Se estávamos no Norte, tinhamos que ir para Sul. Onde é que o Sul ? Para baixo, claro !
O que tem piada é que já dei muitas voltas e dei sempre com a casa. Não deixo de me espantar com isto, mas é verdade.
Quando fui a Sarajevo não havia comboios, (quase) não havia estradas, o chefe que conduzia o autocarro parava de meia em meia hora para meter mais um whisky no bucho, e mesmo assim aparecemos em Zagreb.
Em Amesterdão, e entregues ao violento space cake do “Jolly Joker” (era ?), encontrámos a saída.
Também estivemos no Sahara e, que me lembre, os camelos só tinham bossas.
E em Havana, Cienfuegos ou Trinidad os GPS’s são como charutos. Todos têm um.

O que tem piada é que eu nunca me perdi.
Minto. Perdi-me uma vez. Tinha 3 anos. Estava na Baixa com os meus pais e era Natal. Ainda hoje me lembro disso. Do cagaço.



* Advirto os desatentos que este GPS não é de ar nem de mar. Não sou louco. Com oceano por todos os lados ou no meio de um céu estrelado não há bravura ou velha guarda que resista.

Um dia escrevi isto. Continuo igual.

O Coronel Kurtz

"Com o meu irmão Pedro, por exemplo, darmos o braço é fazermos chichi juntos, no escuro, junto à cascata do jardim dos meus pais, com um comentário sobre o jacto respectivo. Depois sacudirmos os pingos ao mesmo tempo porque a pila não sabe fungar. Então abotoamo-nos e cada um vai para o seu lado, em silêncio. Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade, a olharmos para baixo, cheios de duplos queixos. Tanto che che che nesta frase. Fazer chichi na rua é um dos meus prazeres, devo ter sido cachorro noutra encarnação. Detesto urinóis, retretes: haverá alguma coisa que se compare à exaltação de mijar contra uma parede? Às vezes, a seguir ao jantar, digo ao Pedro



- Já mijaste?



sabendo que ele estava à minha espera para essa celebração da cumplicidade. Nem que sejam três gotas faz-se um esforço. Vemos as árvores, vemos o muro, não nos vemos um ao outro mas estamos ali. Nem quero pensar na ideia de fazer chichi sozinho. No fim pergunta-se



- Como é que estás?



sabendo que o parceiro se cala. Depois cada um no seu carro, sem mais palavras. Um atrás do outro e, a certa altura, separamo-nos, com um sentimentozito de despedida que custa. Quer dizer não custa assim tanto, custa um bocadinho e passa."





Tenho uma relação difícil com o Coronel Kurtz. Antipática. Azeda. Muitas vezes cheia do ódio que guardamos para os bons amigos. O ódio de quem não compreende o que lhe querem dizer. Ou não quer. Eu sei que tens bichos a morderem-te os dias, mas, pr'ó diabo!. Não consigo ver a amizade sem sangue, sem as vísceras à mostra, sem lhe encostar a testa. Sem lhe dizer na cara aquilo que acho. Excepto quando ele fala do Benfica ou é entrevistado, desde que não seja pelo Mário Crespo, muitas vezes tenho de o mandar à merda. Afinal não é excepto. É complicado. Não é fácil. Porque, se não sou eu, é ele que me manda à merda. Andamos muitas vezes assim. Às turras. Eu a chamá-lo e ele a dizer que se está nas tintas para mim. Ele a querer falar e eu a assobiar para cima. Amuados cada um para o seu lado. Até podia alcatroá-lo, mas nunca lhe deitava as penas. Nem deixava.
É que há sempre um jazz, um cigarro ou um whiskey. Há sempre um texto. Um belo texto. Eu digo-lhe obrigado, pá. E ele vai-se embora.



Aqui. Todo.

Como tudo começa

oito e meia da manhã.

olhando pela janela para o céu de segunda-feira enquanto bebia um café.



Eu: Acho que hoje vou de Vespa.
A miúda: De Vespa ?? O que é isso ?
Eu: Ó filha, já sabes que a mota do pai é uma Vespa.
A miúda: Vespa ??? Mas as vespas são más. Acho que vamos ter de lhe dar outro nome...
Eu: Ai, sim ? Qual ?
A miúda: Hummm... já sei ! Girino !
Eu: Girino ??? Mas porquê ?
A miúda: Porque é giro.
Eu: (...)





Quando comprei a moteca, disseram-me que devia dar-lhe um nome. E eu andei, andei, andei, à espera que ela dissesse alguma coisa, que me chamasse, que me dissesse como é que gostava que a tratasse, e nada. Não houve nome. Deve ser do tipo tímido, ou então acha que quem tem que falar sou eu.
Mas agora o assunto resolveu-se. Mal. Porque não consigo voltar a pegar nela (reparem que já não lhe chamo mota) sem me lembrar do ruinoso baptismo da M..
"Porque é giro." What the fuck ?! Giro ??
Mas que raio ? Um gajo está mais distraído e... pimba. Em três penadas, dão-nos cabo do orgulho.
Com esta simplicidade - a que, ao longo da vida, vemos que elas recorrem quando menos esperamos - a reputação da Lx50 de 4 tempos (se tinha alguma) ficou ali, escarrada no chão. E agora trabalhar. Trabalhar na reabilitação. Recomeçar abaixo do zero.



Espero que a miúda perceba rapidamente a dimensão espiritual das coisas, senão estou perdido.
O que vale é que já me vai pedindo para ouvir esta obra-prima de 1969.



Regresso ao Futuro *

Tinha 12 anos.

Está cá tudo.

Meia-final da Taça dos Campeões Europeus. Segunda mão.
No Estádio da Luz, 120.000 pessoas. Provavelmente mais. Naquela altura as bancadas eram de betão. Cabia lá toda a gente.
Uma eliminatória que, algum tempo depois, o nosso Mozer (que é Flamengo, mas sempre foi do Benfica), narraria assim:


«Vesti o equipamento, fiz a minha oração para que corresse tudo bem e não houvesse lesões e fui o último a sair do balneário do Marselha. Ia andando pelo corredor e vejo a equipa toda parada à espera. “Então? Vamos ?!”, disse eu. Subo a escada e vejo o Eusébio do outro lado e quando ele passa é um barulho ensurdecedor, que nem no Maracanã ouvi. E de repente estou só eu lá em cima: fui o único a subir os degraus. Quando o público me vê, começa a vaia brutal e eu, virado para trás, só via os olhinhos dos meus companheiros, espreitando lá em baixo, nos degraus. Eu chamava-os e eles respondiam “espera aí, deixa passar isso.” E aí eu pensei: pronto, perdi o jogo. Tínhamos grandes jogadores como o Papin, o Chris Waddle, o Abedi Pelé, mas não conseguimos render e talvez tenha sido do público porque os jogadores do Marselha não tinham o hábito de passar por isso.»

 
Inferno. Demência. Total. Benfica.
Ao minuto ’84, ou por aí, o resultado em 0-0. Na primeira mão tinha ficado 2-1 para o Marselha, ou seja, estávamos eliminados.

Veloso ganha a bola na esquerda, mete-a para a linha de fundo onde estava o Paneira ou o César Brito que a recebem. Com dois jogadores do Marselha em cima, ganha-se o corner.
O Valdo chuta de canto. Magnusson desvia a bola com a cabeça e, no meio de dois centrais contrários…. VATA.
A sagrada mão de Vata.

Que mão !
A Luz vem abaixo. Os franceses que relatam o jogo (ouçam bem !) arrancam cabelos, desesperados, histéricos. Femininos, até.
Droit au but ! Não é isso que está escrito no emblema do Marselha ?
Como já disse muitas vezes, uma mão como a do Vata é sempre lícita.
 


É sempre uma bonita mão.

É virtude.
É logro. Um poema. É eterna.
É maradona. É tango.
É uma gambetta, esse milagre argentino chamado finta e engano.
Tem que ficar.
Tem que ser golo. Foi golo.
E, pronto, dois anos depois de Estugarda, o Benfica de novo na final da TCE. Porque o Benfica é o Benfica.
E o Benfica jogou futebol. Nesse dia o Benfica jogou futebol.

* No mês passado voltámos a eliminar o Marselha.

A Nossa Mãe

A minha Avó Aida não tinha defeitos. Não tinha.
Uma Avó com olhos para os outros, para os filhos, para os netos, e, mais tarde, para os primeiros bisnetos.
Devoção ao marido. Devoção total ao Avô F.. Até na data em que escolheu partir.

No último fim-de-semana que esteve connosco, quis despedir-se de nós. Percebi isso. Brincou com a M., pondo as cartas, e quis, mesmo, pegar no R. ao colo (o que já não fazia há algum tempo por receio). Claro que lho dei para as mãos. Foi uma vontade final. Clara. Forte. Certa.
E viu-o, pela primeira vez, dizer adeus com a sua mãozinha. Despediu-se de nós.

Na segunda-feira seguinte, há quatro semanas, entrou no Hospital.
Já não podia mais, da longa e feliz caminhada que começou num apaixonado bailarico de aldeia onde conheceu para sempre o meu querido Avô.

Deu tudo, sempre tudo. E a todos.
Para ela nada. Só queria ver-nos. E ver-nos bem. Nunca a ouvi pedir nada. Nada. Não queria incomodar, como costumava dizer, e era feliz assim.
Até no final, nos quis dar tempo.

Choro.
Mas estou em paz, querida Avó. Por ter tido a sorte de a conhecer, de me saber seu neto, neto de uma maravilhosa Senhora, uma Flor. Por lhe ter beijado a face e conhecido as suas mãos. Por ter tido aquele sorriso doce, calmo e meigo com que sempre nos acolheu. Por poder um dia dizer, aos meus filhos, que os primeiros casaquinhos que vestiram foi a Bisavó Aida que os fez.

Mãe. Mãe.
A minha boa Avó costumava lembrar que um dia (teria eu 4 ou 5 anitos) me pôs de castigo, separado da minha irmã. Foi a única vez que isso aconteceu. Deve ter sido sério.
Entre soluços e algumas lagrimitas, contava ela com gozo, terei dito: “Ao menos, quando ela morrer, não vou ter pena nenhuma !”
Ria sempre que contava esta história. Gostava dela.
E eu, enfiado no chão, arrependido por um dia ter dito o que disse.
E, talvez por isso, quando ela contava esta história, eu, em absolvição, contava logo outra: outra vez de castigo. Nessa, a minha Mãe. Não podia ir para a rua jogar à bola.
Foi então que, apanhando-a ao telefone com a Avó Aida, lhe tirei o telefone da mão e implorei que intercedesse junto da filha. Não com estas palavras, claro. Mais ao estilo de umas queixinhas, que a Mãe não me deixava ir para a rua. E a malta estava à espera.

Devolvi o telefone à minha Mãe e, dois segundos depois, estava na rua. Para jogar.
Mãe, portanto.

Avó a quem tantas vezes recorri, que tantas vezes me recebeu em sua casa, com um pratinho quente para o almoço. E ficava-me a ver. E, sobretudo, a ouvir.
Querida Avó:

Obrigado. Obrigado, querida Avó. Não tomes mais conta de nós, mas desce, Flor do Céu, sempre que precisarmos.
Este é o meu beijo.

O Fight Club

Tyler Durden, o lendário Tyler do “Fight Club”, num dos melhores diálogos do filme, diz a determinada altura que eles (nós) pertencem(os) à Geração do Meio.
Queria ele dizer – julgo – que, como o irmão do meio, filho para quem em geral a família se está nas tintas, à nossa geração também ninguém liga muito.
Tyler depois desenvolvia um bocado a ideia: que éramos uma geração facilitada, que não havia grande rumo, que as dificuldades tinham ficado para os mais velhos e que a nossa geração estava basicamente entregue a si mesma porque ninguém queria saber de nós, nada iria acontecer de relevante nos nossos anos e não íamos ficar na História.
Há algo de assustadora e desesperadamente verdadeiro nisto.

Só não concordo com a conclusão: não ficarmos na História.
Tenho pensado muitas vezes neste tema. Tenho discutido muito, e o que digo, apesar da veemência do discurso, não tem feito muito eco. Aliás, que me recorde, só uma pessoa esteve comigo. Um raio, ou melhor, um corisco.
O problema é, em suma, este.
Nascemos e crescemos em democracia. Temos conforto, sofás e há o IKEA. Os anos 80 e 90 foram anos de progressiva ascensão económica e social. Chegámos ao mercado de trabalho em 2000. As nossas vidas foram bestialmente perfeitas, certinhas, previsíveis.
Quando podíamos ter ido fazer qualquer coisa, escolhemos uma carreira. Já o dizia Mark Renton, no final do Trainspotting. E pronto. Uns melhor, outros menos bem, começámos a trabalhar e a ganhar (logo) relativamente bem. Não há sobressaltos. A vida corre como planeado, temos 30 anos e não há crises.
Isto não quer dizer que não haja dificuldades. Há e (parece-me) mais do que algum dia. Não se pode é comparar estas com as de "antigamente".
Falando apenas do séc. XX, lembro as sucessivas convulsões políticas, sociais, económicas que os nossos pais, avós e bisavós atravessaram. Foram alturas de verdadeira escassez. Duas guerras mundiais, recessões económicas, queda de impérios coloniais, independências, para, numa palavra, chegar à Liberdade.
Connosco nada disso. Claro que há as ameaças do terrorismo, mas estas também servem para financiar o produto bélico. Dinheiro. Títulos comerciais. Bolsa. Mercados. Tudo seguro. Tudo, afinal, tão vazio e feito de areia.
Como achava que este clima de sagrada abastança não podia continuar por muito tempo, comecei a dizer aos meus amigos que algo viria para aí. Tinha que vir. Falei em voltar à enxada. E que podíamos ser forçados a experimentar uma luta selvagem pela sobrevivência. Disseram que exagerava. Que era medo.
E, de repente, a crise financeira de 2008 parecia dar-me razão. Histeria total. Pânico. O dinheiro (afinal) não existia. Era tudo ficção. Era o fim. O fim das nossas sociedades, o fim do nosso estilo de vida. O fim.

Mas... amainou, e, como vivemos tão obcecados por uma ilusória segurança, as coisas começaram a voltar ao normal. Os Bancos a emprestarem o dinheiro que não têm, os Governos a usarem o dinheiro que não é deles, e todos a vivermos uma doce realidade virtual. Universo paralelo.
É aqui que me separo do Tyler: "Não ficaremos na História. Nada faremos digno de registo." Não acho.
Estamos enfiados num Fight Club tramado. Somos a Geração do Meio, sim, ou a Geração Só. Não temos ninguém ao lado, coisa que não acontecia com as gerações passadas, onde havia pilares fundamentais da sociedade que garantiam estabilidade.
Hoje estamos por nossa conta. Os Governos mentem-nos. A Justiça quer ser política. Os Bancos vão à falência. As empresas governam-se. Os jornais dizem-nos o que outros querem dizer. Todos se servem e fazem batota. E a família (quase) inexiste. Muitos avós têm que continuar a trabalhar. Não há reformas. Os putos ficam entregues a quaisquer uns. E um dia vão cobrar.
Esta é a nossa Revolução. Mudar isto. Este é o nosso Fight Club.

Something in the Way

No outro dia acabei a noite de copos na casa de um amigo para mais uns... copos e cigarros. Bytheway fiquei com a garganta fodida. Ainda estou.

A dada altura, eram para aí umas quatro da manhã, demos por nós a ver isto




A discussão começou quando alguém (já não sei bem quem) disse que estes tipos, um trio de acordes meio básicos, completamente desarranjados, desalinhados e outros "ados", tinham revolucionado a nossa geração. O Fuller gosta de ser do "contra". Por isso, do alto da sua acuidade musical, manda-nos à merda. Que os "Beatles" (gente sagrada para mim) é que tinham feito todas as revoluções, que tinham melodias e letras cheias de verdades, que os nossos pais é que tinham tido sorte porque eles tinham tido uns tipos cultos e musicalmente dotados para cortarem com a geração anterior, etc, etc, num sem fim de argumentos lógicos e imbatíveis.
Tudo em polvorosa. Todos nos lembrámos do release do "Smells like teen spirit" e de como, naquele 9º ano, de repente já era lícito mandar os professores à merda. Mesmo.
Eis então que, da quietude do seu sofá, surge um remansado "Buiça" com o argumento final:
"Mas, Fuller, isso não interessa para nada, pá! Melodias, letras, quando se pode simplesmente dizer: «Estamos fartos do que nos contam, BAAAHHHHHHH ! Não nos venham com lérias, BAAAHHHHHHH !»" E o "Buiça", de língua de fora.
O Fuller à rasca. Acabou logo ali a discussão.
Este post não é sobre a juventude ou aqueles anos de uma livre alegria descomprometida.
É que a vida é contraditória com'ó caraças. Por isso aqui ficam os Monstros de Abbey Road. No Paralelo 23.