«Terá sido Tony Adams, mítico capitão do Arsenal, que disse que "se
jogares pelo nome inscrito na frente da camisola, os adeptos recordarão o nome
inscrito nas costas". A frase fixa uma visão romântica do futebol, de um
jogo que já não existe, onde a figura do jogador-adepto era uma possibilidade
realista.
Os tempos "desportivos" já não estão para isso. Nós,
benfiquistas, não mais devemos esperar exemplos como os daqueles que resistiram
às propostas materialmente tentadoras de clubes mais (novos) ricos, no momento
da fundação - mantendo o espírito popular, definido pelo grande Cosme Damião na
Farmácia Franco.
Vivemos por isso uma tensão permanente: queremos perpetuar uma visão
romântica do futebol, própria do adepto, mas a realidade chama-nos de forma
sistemática.
O Bernardo era uma raridade e um resquício
de um passado que teima em nos abandonar. Jogador adepto como nós, mas com o
talento com que todos sonhamos. Uma predisposição natural para jogar futebol
(que, como é sabido, é daquelas coisas que não se aprende, nem se ensina, mas
que se vislumbra logo no primeiro toque na bola) e, a pairar sobre isso, um
amor filial ao Glorioso.
Há mais de um ano, escrevi no Record que "de quando em quando surge um
jogador adepto como nós, mas com o talento que ambicionámos ter. Um sofredor
que tem a sorte de poder sofrer no relvado, de camisola ao peito. Há jogadores
profissionais que honram a camisola; mas uma coisa é jogar com afinco, outra é
jogar com afinco com a camisola do clube do coração. Momentos há em que, numa
espécie de epifania, ao adepto se junta o empenho e o talento. É desta
conjugação que nascem os jogadores que nos fazem sonhar".
O texto era sobre o Bernardo. O mesmo Bernardo que, num desfecho anunciado,
mas que nos procuraram esconder de forma tosca, deixa agora o Benfica, onde na
verdade nunca chegou a jogar.
Bem sei que, nos tempos modernos, o que nos prende a um clube são as
camisolas, a ideia de equipa e os jogadores que (muito) transitoriamente as
vestem com profissionalismo. Sei também que um clube português não tem
condições financeiras para rejeitar ofertas de 15 milhões por projetos de
jogador (por muito que gostemos do Bernardo, é ainda o que ele é). Mas, o adepto que há em mim vive com frustração
os choques com a realidade.
No prolongamento da infância e fuga ao real, que são as formas como vivo o
futebol, o Bernardo seria o nosso
capitão, marcaria golos atrás de golos e o seu pé-esquerdo resgataria a memória
que guardo do Chalana da minha infância. Sei bem que nada será como eu
sonhei, mas sei também que teremos cá o Maxi e o Luisão para mostrarem como o
amor à camisola também se aprende; o Talisca para alimentar fantasias; o Gaitán
para nos fazer crer que podemos ambicionar toda a grandeza e o Gonçalo Guedes
para fazer de Bernardo. De resto,
podemos sempre manter a esperança de que, um dia, o Bernardo se cansará do
sucesso desportivo e material e, como o nosso Rui Costa, nos concederá (e
conceder-se-á) a Glória de regressar à Luz.»
"De Silva para Silva: Espero que o Bernardo seja como o nosso Rui Costa", por Pedro Adão e Silva
'Expresso'