sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O "Coronel Kurtz", outra vez

«I
Porque camandro é que não se fala nisto ? Começo a pensar que o milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não existiram nunca e lhe estou contando uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar, uma história inventada com que a comovo a fim de conseguir mais depressa (um terço de paleio, um terço de álcool, um terço de ternura, sabe como é ?) que você veja nascer comigo a manhã na claridade azul pálida que fura as persianas e sobe dos lençóis, revela a curva adormecida de uma nádega, um perfil de bruços no colchão, os nossos corpos confundidos num torpor sem mistério. Há quanto tempo não consigo dormir ? Entro na noite como um vagabundo furtivo com bilhete de segunda classe numa carruagem de primeira, passageiro clandestino dos meus desânimos encolhido numa inércia que me aproxima dos defuntos e que o vodka anima de um frenesim postiço e caprichoso, e as três da manhã vêem-me chegar aos bares ainda abertos, navegando nas águas paradas de quem não espera a surpresa de nenhum milagre, a equilibrar com dificuldade na boca o peso fingido de um sorriso.
(...)

estamos em 71, no Chiúme, e a minha filha acaba de nascer. Acaba de nascer e a essa hora as senhoras do Movimento Nacional Feminino  devem estar pensando em nós sob os capacetes marcianos dos secadores dos cabeleireiros, os patriotas da União Nacional pensam em nós comprando roupa interior preta, transparente, para as secretárias, a Mocidade Portuguesa pensa em nós preparando carinhosamente heróis que nos substituam, os homens de negócios pensam em nós fabricando material de guerra a preço módico, o Governo pensa em nós atribuindo pensões de miséria às mulheres dos soldados, e nós, mal agradecidos, alvos de tanto amor, saímos do arame em que apodrecemos para morrer por perversidade de mina ou emboscada, ou deixamos negligentemente filhos sem pais a quem ensinam a apontar com o dedo o nosso retrato ao lado da televisão, em salas de estar onde tão-pouco estivemos.»

(António Lobo Antunes, "Os Cus de Judas")

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