Há pessoas que podem valer uma viagem. Tipos que foram feitos para os conhecermos, e tudo até parece preparado para nos levar até eles.
Um italiano e uma argentina em lua-de-mel tinham-nos falado em El Calafate deste homem. Contaram que fazia expedições às montanhas sozinho. Que só levava com ele quem ele escolhesse e passasse pelo seu crivo particular. Disseram-nos que estava desenquadrado do espírito comercial, rotineiro, previsível e limitado das agências de turismo. Isso agradou-nos logo. Era o que procurávamos no fim do mundo: um lobo solitário.
Encontrámo-nos com ele e em uma hora e meia explicou-nos como trabalhava e que tipo de coisas podíamos esperar dele e ver com ele. Olhava para nós e fazia-nos perguntas. Não evitou que depressa eu sentisse que ele é que nos examinava e avaliava a nossa resistência. Gostou das nossas botas e aprovou a expedição.
Combinámos que nos levaria da montanha nevada do Cerro Bonete até à Lagoa Esmeralda, do nome encantador !
Miguelangelo Casalinuovo foi o grande encontro desta viagem. Um homem cheio de vida e ideias revolucionárias sobre o mundo. Filho de um italiano que tinha vindo para a Argentina com doze anos nos anos 40, o Miguel era um biólogo que se tinha vindo refugiar de tudo o que Buenos Aires lhe tinha feito. Tinha trabalhado, em tempos, para a embaixada dos Estados Unidos da América e podia ter ido viver para os E.U.A., fazer um mestrado e seguir a carreira diplomática que lhe prometeram. Em vez disso, o Miguel vivia agora em Ushuaia, aliás numa estância chamada Cotorras, há cerca de 8 anos. Tinha cortado com o sistema e fez-se professor e depois sindicalista, para "luchar contra el gobierno".
No princípio, estava calado, reservado, quase desconfiado, dos turistas que vinham de longe. Aos poucos, foi-se revelando, estimulado pela conversa (muita dela política) que nós íamos puxando.
Pôs-nos umas raquettes nos pés e começámos a nossa longa caminhada pela neve até à Lagoa Esmeralda, que fica no topo do Cerro Bonete. Pelo caminho, ia-nos apontando a vegetação, o tipo de árvores que ali cresciam, as madrigueiras (que são os diques dos castores) e os pássaros que íamos vendo.
"Tirem os casacos e as camisolas. Quando chegarmos lá acima vão estar quentes e suados e vão arrefecer depressa. Nessa altura, sim, voltam a vesti-los.", avisou-nos.
O tempo foi muito e deu para falar de quase tudo, mas sobretudo sobre a situação socio-económica da Argentina, ali e no passado, o ladrão do Ménem e dos outros todos, sobre Bush filho e política internacional, sobre a história comum dos nossos povos e sobre a vida em geral. Enfim, oxigenados pelo ar mais puro que há no mundo, sabia-nos bem estar vivos, sermos homens e sermos livres. Ali, ninguém podia controlar o que pensávamos. Três pessoas a conhecerem-se e que se compreendiam inteiramente, apenas comungando daquele espaço e unindo-se no consolo de seres humanos.
Lá em cima, tomámos um chá e comemos umas sanduiches de frango. Preparámos a descida e, já cá em baixo, bebemos outro chá numa cabana de madeira de Alex, mais um refugiado, este europeu, das Astúrias que, como nos disse, "só ia à Europa para fazer plata".
Chegámos estoirados e moídos e fomo-nos deitar.
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