segunda-feira, 17 de novembro de 2014

'Amadeu', de António Lobo Antunes



"Tomou o pequeno-almoço, uma chávena de café e umas bolachas, três ou quatro, as últimas da lata, molhou a ponta do indicador na língua a apanhar as migalhas do fundo, que comeu também e depois arrumou a lata na prateleira e colocou a chávena no lava-loiças, tudo isto sem pressa, nos gestos do costume. Limpou as gengivas com a língua até o gosto das migalhas lhe desaparecer da boca. Encheu a chávena de água para a lavar depois. Era uma chávena branca, com uma paisagem impressa: árvores, animais que pastavam, uma casa ao longe, e o contacto dos dedos com a loiça, tão lisa, era-lhe sempre agradável. A seguir foi para a casa de banho, lavou os dentes, fez a barba

(teve de mudar a lâmina, que já cortava mal)

abriu a torneira da água quente do duche, abriu um bocadinho a torneira da água fria, experimentou a temperatura com a palma, abriu mais um bocadinho a torneira da água fria, despiu o pijama e meteu-se no chuveiro depois de vedar bem a entrada com a cortina de plástico azul, que corria, em argolas transparentes, ao longo do varão, a fim de não molhar a toalha que servia de tapete. Lavou a cabeça com cuidado, de forma ao champô não lhe incomodar as pálpebras, sentindo o cabelo que começava a rarear. Ao princípio detestou estar a ficar careca

(até comprou umas ampolas que não serviram de nada)

depois foi-se habituando a pouco e pouco

 - Sou careca

embora não lhe agradasse muito a pele da cabeça nua nas fotografias que, na sua opinião, o faziam parecer mais velho do que era. A risca do cabelo que sobrava, agora perto da orelha, já não cobria grande coisa mas as mulheres não se importavam, ou fingiam não se importar, com isso, o que, apesar de tudo, sempre lhe dava algum consolo. Fechou as torneiras ao mesmo tempo, afastou a cortina de plástico, apanhou a toalha da barra cromada em frente e sentou-se no bidé, a fumar um cigarro, enquanto o corpo ia secando sozinho. Detestava esfregar-se, lembrava-lhe a mãe, que o magoava com o seu excesso de energia

- A ver se consigo tirar-te como deve ser o sabão das orelhas

voltou ao espelho para se pentear, descobriu um pêlo enorme a sair-lhe do nariz, apanhou uma tesoura pequena da gaveta e, à terceira tentativa, lá conseguiu cortá-lo

( - Como é que eu não dei por isto antes?)

e fazê-lo seguir, lavatório abaixo, até às profundezas do inferno. Aproveitou para verificar, de esguelha, se pêlos nas orelhas, não deu por nenhum, guardou a tesoura, no género daquela com que lhe cortavam as unhas em criança

(a mãe, sentada no sofá

- Chega-te aqui à luz e está quieto)

e ele com medo que, por distração, lhe amputassem a ponta do mindinho.

(Os óculos da mãe, enormes, pareciam engoli-lo. Faleceu de repente, um aneurisma, três anos antes, pelo menos a autópsia garantiu que um aneurisma e certamente quase não sofreu. Valha-nos isso: não era má pessoa, a mãe.)

De toalha amarrada à cintura e chinelos felpudos passou ao armário da roupa. Puxou umas cuecas quase ao acaso

(não tinha previsto nenhum encontro galante)

cujo elástico começava a perder força mas ainda aguentava, um par de meias pretas, que têm a vantagem de dar com tudo, uma camisa branca que teve de desabotoar para a abotoar de novo, começando pelo colarinho e vindo por aí adiante até ao fim da barriga, que ia aumentando devagar, mais cuidado com as sobremesas, rapaz, sentindo-se uma espécie de clarinetista a treinar escalas. A seguir um do dois fatos azuis, encostando o ombro à parede a fim de não se desequilibrar ao entrar nas calças, um cinto preto, sapatos pretos, sem atacadores, que têm a vantagem de poderem calçar-se de pé e lhe pareciam um número acima do seu dado que às vezes os calcanhares dançavam um bocadinho lá dentro, voltou ao quarto de banho a fim de aperfeiçoar o nó da gravata, de colarinhos ao alto, baixou os colarinhos, certificou-se que a gravata na exacta bissectriz deles, uma gravata de um amarelo discreto que, na sua opinião, lhe aumentava a dignidade, sobretudo com o casaco já posto, surpreendeu-se com um pedaço de linha vermelha, incompreensível, na lapela, que enrolou entre o indicador e o polegar e depositou num cinzeiro de vidro, procedeu a uma verificação final, acamou as madeixas das têmporas, perfumou um tudo nada o pescoço

(nunca perfumava mais do que o pescoço)

ainda se mirou, de perfil, no espelho, e achou-se bem, apagou as luzes atrás de si, espreitou as horas no relógio de pulso

(vinte minutos para chegar ao emprego, não demorava mais do que dez, sobrava-lhe algum tempo)

e sentou-se, de perna cruzada, tomando cuidado com os vincos, na poltrona onde costumava ler o jornal à noite, a seguir ao jantar, com a televisão ligada numa novela qualquer, a fazer-lhe companhia. Trinta e oito segundos depois levantou-se e foi à janela observar a rua. Um par de homens lá em baixo consertavam um cano, não estava frio porque as mulheres usavam manga curta, com excepção de uma velhota de xaile: os ossos dos idosos não aquecem, coitados, a mãe, por exemplo, mesmo em agosto, dormia de botija e casaquinho de lã, queixosa da temperatura. Abriu a janela e confirmou que nenhum frio, como nenhum vento também, as folhas das árvores quietas, pombos a rondarem a esplanada. No cabeleireiro, quase em frente, começavam a tirar os taipais, duas raparigas loiras, uma gorda e uma magra, de bata cor-de-rosa, a conversarem entre si, sem olharem para cima. Se olhassem para cima viam-no, empoleirado num banco, a colocar uma das pernas fora da janela e a inclinar-se para a frente, como veriam que, do quinto andar ao passeio, um sujeito de setenta e sete quilos demora 3,4 segundos a chegar."

in ‘Visão’

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