sábado, 7 de janeiro de 2017

O Astrágalo



«Talvez seja errado falarmos de nós mesmos quando escrevemos sobre outrem, mas pergunto-me se na verdade me teria tornado no que sou, sem ela. Ter-me-ia continuado a comportar com o mesmo atrevimento ou enfrentado as adversidades com esta tenacidade feminina, se não tivesse Albertine como guia? Os poemas que escrevi quando era jovem teriam a mesma força mordaz sem ter tido Astragal como livro de cabeceira?
Descobri-a, de forma acidental, quando vagueava por Greenwich Village, em 1968. Era Dia de Todos os Santos, facto que mais tarde registei no meu diário. Estava com fome e a precisar de um café, mas primeiro passei pela Eight Street Bookshop para dar uma vista de olhos nas promoções. Havia colecções da Evergreen Review e traduções obscuras das editoras Olympia e Grove Press – novas escritas que a populaça evitava. Eu andava à procura de alguma coisa que tinha mesmo de ter: um livro que fosse mais do que um livro, com certos sinais que me pudessem levar por um caminho inesperado. Senti-me atraída por um rosto surpreendente e remoto – impresso em roxo sobre fundo preto – numa capa poeirenta proclamando que a sua autora era uma “Genet no feminino”. Custava 99 cêntimos, o preço de uma tosta de queijo e um café no Waverly diner, do outro lado da Sexta Avenida. Eu tinha um dólar e um bilhete de metro, mas depois de ler as primeiras linhas estava conquistada – uma fome derrotou a outra e eu comprei o livro. O livro era Astragal e o rosto da capa pertencia a Albertine Sarrazin. Ao voltar a Brooklyn de metro, devorando o exemplar já usado, fiquei apenas a saber que ela tinha nascido em Argel, era órfã, estivera a cumprir pena e escrevera dois livros na prisão e um em liberdade, e morrera pouco antes, em 1967, quase a fazer 30 anos. Encontrar e perder uma possível irmã quase ao mesmo tempo tocou-me profundamente.  Estava a aproximar-me dos 22 anos, longe de Robert Mapplethorpe. Previa-se que aquele ia ser um Inverno duro, já que tinha deixado o calor de certos braços pela incerteza de outros. O meu novo amor era um pintor que aparecia sem avisar, lia em voz alta passagens de Nossa Senhora das Flores de Genet, fazia amor comigo e depois desaparecia durante semanas. Essas foram noites de uma centena de sonos: nada acalmava a minha agitação. Estar presa no drama da espera – pela musa, por ele – era uma tormenta maliciosa. As minhas próprias palavras não bastavam; apenas as de outrem poderiam transformar a infelicidade em inspiração. Em Astragal encontrei essas palavras, escritas por uma rapariga oito anos mais velha do que eu, já morta.
(...)
Albertine, a pequena santa dos escritores independentes. Quão rapidamente fui arrastada para o seu mundo – pronta a escrevinhar pela noite fora, com canecas de café a ferver e a parar apenas o tempo de refazer o risco nos olhos com Maybelline. O seu jovem mantra foi aceite com todo o coração, o meu espírito maleável infundido.
(...)
Aos dez anos, foi violada por um membro da família do padrasto. Depois de tentar fugir, os pais mandaram-na para um reformatório de raparigas paradoxalmente chamado Bom Pastor. Era um sítio duro, onde ela era humilhada e onde lhe retiraram o seu nome de baptismo, Anne-Marie. Aos 13, tinha um caderno de lombada em espiral, um registo precioso das suas observações perspicazes; foi confiscado depois de o perfume de lírios-do-vale que usava ter sido considerado demasiado forte. Era pequenina e bonita, armada da vontade discernível de Joana D’Arc ao ser julgada, e fugiu do reformatório para as ruas de Paris para eventualmente levar uma vida de prostituta e pequena ladra. Aos 18 foi presa, com uma cúmplice, por roubo à mão armada e condenada a sete anos de cadeia. O seu último deslize valera-lhe quatro meses de prisão em 1963 por palmar uma garrafa de whiskey. Escrevia todo o tempo: durante a adolescência, no amor e no abandono, dentro e fora da prisão, escrevia.
A vida é muitas vezes o melhor filme. O dela terminou tristemente, num hospital, onde, fatigada, sorria para o seu amante, Julien, entregando depois o seu destino a um anestesista negligente. Que sonhos havia debaixo daquelas pálpebras cobertas de Maybelline enquanto estava a ser transportada – um futuro com Julien, paz e prosperidade, o reconhecimento? Todos eram possíveis, porque finalmente estavam ao virar da esquina. Eles tinham-se casado e despedido do crime. Deixou o mundo amada, mas, tal como quando nele entrou, numa nuvem de incúria.
Santa Albertine da caneta de usar e deitar fora e do perpétuo lápis de olhos. Vivi no seu ambiente. Imaginei o fumo azul do seu cigarro enrolando-se à volta das suas narinas, movendo-se pela sua corrente sanguínea e cavalgando a antecâmara do seu coração. Eu estava com demasiada bronquite para fumar, mas levava um pacote de Gauloises vertes no bolso da saia. Andava de um lado para o outro à espera que o meu pintor viesse e me salvasse do meu presídio auto-imposto, tal como ela tinha esperado por Julien. Nunca a espera foi tão suportável, nem o Nescafé um elixir tão bom. Criei o meu próprio jargão, iniciado com Astragal e completado com La Cavale, o seu romance seguinte, traduzido para inglês como The Runaway, com uma das grandes frases de abertura da literatura francesa: “Esta noite vesti-me a rigor para a minha entrada na prisão: casaco de peles e calças com vinco.”
(...)
Um dia visitarei a sua campa com um termo de café e vou sentar-me um bocado com ela e vaporizar perfume de lírios-do-vale na sua pedra tumular - em forma do osso astrágalo, que Julien colocou em sua memória. Minha Albertine, como a adorei! Os seus olhos luminosos guiaram-me na escuridão da minha juventude. Ela era a minha guia pelas noites de centenas de sonos. E agora ela é vossa.»

'Minha Albertine', por Patti Smith (introdução para a edição americana)

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