«(...) Pior do que a crueldade, sempre gratuita, é esta indiferença perante a crueldade. As pessoas que resolvem olhar para o lado, fugir com o rabo à seringa, pretendendo não ver. As pessoas que têm horror da resistência. Os facilitadores. Os cúmplices. Os assalariados. Os corrompidos. Os cobardes. Os amorais. Os neutros.
O que assusta em Trump não são as políticas de Trump. O que assusta é a crueldade, traço evidente para quem viu os episódios de “O Aprendiz” ou os primeiros debates contra os republicanos, quando ele não esperava ganhar. Quando descobriu uma aberta em Jeb Bush nunca mais o largou, como um mastim esfomeado a quem atiraram um bife. Vemos a crueldade dentro da auréola branca dos olhos pequeninos, no fungar enervado, na crispação furiosa do desapontamento. E vemo-la no triunfo, quando ela se torna corrupção e prepotência, vingança e soberba. Vemo-la quando ele sai do carro e avança para Obama deixando para trás a mulher, sem lhe abrir a porta ou esperar por ela. Caminha sempre na frente da família, a filha favorita ao lado, o filho pequeno na cauda. Vemo-la nas entrevistas e nas poses. Nos filmes e nos livros sobre ele, pagos ou não por ele. Vemo-la no dedinho autocrático, o bracinho biónico deste Dr. Strangelove. Vemo-la agora, perigosíssima, nestas ordens executivas feitas por medida. E vemo-la, suprema, no olhar maléfico do seu mentor, Steve Bannon, o novo senhor da Segurança Nacional americana. Bannon, o “leninista”, o “Darth Vader” (palavras dele) que gosta de soluções finais para os problemas nacionais e internacionais. O amante da força bruta e da guerra total, o homem que quer destruir o sistema. O ditador dos media. O Goebbels desta ópera bufa. Vemos a crueldade claramente vista. Podemos escolher não ver, como fazem Paul Ryan e Theresa May com olhos murchos. Podemos sempre não ver, mas custa-nos a alma.»
in 'Expresso', 4.02.17
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