sábado, 19 de março de 2016

"Alegria de Viver", por Clara Ferreira Alves

Roma, Outubro de 2010
(foto: andré raposo)


"Há uma razão para não deixar a Alemanha tomar conta da Europa. Chama-se alegria de viver.

Já estiveram dentro de uma estação de caminho de ferro na Alemanha? A famosa Hauptbahnhof? Olharam para a comida? Desceram às catacumbas e encontraram os despojos do brigadismo alemão e os despojos do movimento punk cobertos de piercings, tachas e botas com esporas? Despojos a que se juntam os junkies e os bêbados e vagabundos crepusculares? Ou o nazi errático com a suástica a sair do músculo? Uma hauptbahnhof só é bem apreciada ao anoitecer e nos recantos subterrâneos. Nunca se viu gente mais infeliz do que esta. E basta olhar para a cara da pobre senhora Merkel, acossada pela extrema-direita, para perceber que a felicidade não reina ali. Agora, olhem para a bem mais modesta estação de caminho de ferro de Bolonha. A Stagione Centrale. Nada a assinalar, pessoas com ar decente, viajantes velhos e novos. Gente composta. No modesto bar da estação, Santa Margherita, encontramos uma variedade gastronómica digna do Fauchon em Paris ou do Dean and DeLuca em Nova Iorque. Sem exagero. E muito mais barata. Numa mesa com cadeiras de plástico de design italiano, uma velhota beberica um copo de vinho tinto, um pequeno copo de vinho tinto, com uma sanduíche de presunto de Parma cor de rosa e transparente. Isto é o cúmulo da civilização. O expresso é perfeito, fazendo morrer o Nespresso num segundo. Não se vê um bêbado. Aliás, com tantos vinhos e tão generosamente bons, é raro encontrar-se um bêbado italiano aos uivos nas ruas. Em compensação, sobram os bêbados da Europa do Norte. Uma viagem em Itália chega para perceber que deviam ser os italianos a mandar na Europa. Eu sei, a trapalhada, as berlusconices e tudo mais, mas não são cínicos como os franceses, nem snobs, têm da melhor paisagem e cultura disponíveis, do mais apurado sentido estético, e uma infinita alegria de viver. Têm livrarias e bibliotecas maravilhosas. E a herança do Umberto Eco, o último intelectual europeu bem encarado. Os italianos são um povo feliz. Na Emilia Romagna, de que Bolonha é a capital, os habitantes têm índices de felicidade comparáveis aos do Butão. Agora, experimentem passar um tempinho em Essen ou em Frankfurt e digam se gostaram. A Itália e a Grécia têm apanhado com a crise dos refugiados em cima e têm tido um comportamento exemplar. Não existe uma rua de Florença, Nápoles, Roma, Bolonha, Milão ou Veneza sem a suprema abundância de africanos a vender malas Prada chinesas. Não existe um beco mal-afamado onde não vagueiem migrantes e refugiados das guerras do Médio Oriente, do Afeganistão e Paquistão, do Norte de África. Nos esconsos da estação central de Roma, a Termini, as máfias de contrabandistas resolveram apadrinhar o tráfico humano e usar os refugiados menores como correios de droga e prostitutos. Existe um grupo constituído apenas por egípcios, quase crianças, que os pais enfiaram nas galeras do Mediterrâneo depois de terem gasto todas as poupanças para os entregar aos contrabandistas. Acham que a Europa os salvará.

E nem vale a pena falar dos líbios e dos sírios.

A Polícia italiana vai desbandando mas no dia seguinte eles reaparecem, e o tráfico continua. Dentro da estação, no bar, calmamente, o cidadão italiano bebe o seu expresso ou o seu Chianti e come o seu tramezzino ou cornetto, lê o seu jornal sem um sobressalto. Lá fora, desde os atentados de Paris, carros militares e soldados com metralhadoras vigiam as estações e os monumentos, as praças e as catedrais, e nem por isso a paisagem se deprime. Existem manifestações pela abertura das fronteiras dos Balcãs aos refugiados. Não existem manifestações noturnas de nazis, não existe uma Aurora Dourada ou uma Marine Le Pen. Existe uma extrema-direita sem expressão eleitoral perigosa. A Itália, que não é rica como a Alemanha, tinha todas as razões para ter a sua Frauke Petra. Os seus “patrióticos” Pegidas. Que não se dariam bem com os seus Corleones.

A alegria de viver ajuda muito. Num país onde a beleza é uma coisa natural, a comida é gostosa, o sol brilha, as pessoas têm menos tendência para o azedume. E ninguém, em Itália, acompanha carne com um litro de cerveja ou bebe uma malga de café com leite por cima do peixe. Há que dizê-lo com frontalidade: os alemães são uns tristes. E já que estamos na sociologia de bolso e no empirismo filosófico, com quem preferia beber um belo Barolo? Comer uma massa tartufata? Com a Frau Merkel, ou com a Frau Frauke, ou com Renzi? Um país que deu à luz a Monica Vitti e o Antonioni não se pode comparar com o país que deu à luz o Rainer Werner Fassbinder e a Dietrich. Olhem para as caras.

A Europa está condenada. A tristeza da Alemanha vai continuar a mandar em todos nós e só pode acabar mal. Estamos tristes e acabaremos tristes. E, quem sabe, nas mãos de gente que não gosta de gente estranha. Nem de viver."
in 'Expresso', 19.03.2016

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