Roma, Outubro de 2010
(foto: andré raposo)
"Há uma razão para não deixar a Alemanha tomar conta da Europa. Chama-se alegria de viver.
Já estiveram dentro de uma estação de caminho de
ferro na Alemanha? A famosa Hauptbahnhof? Olharam para a comida? Desceram às
catacumbas e encontraram os despojos do brigadismo alemão e os despojos do
movimento punk cobertos de piercings, tachas e botas com esporas? Despojos a
que se juntam os junkies e os bêbados e vagabundos crepusculares? Ou o nazi
errático com a suástica a sair do músculo? Uma hauptbahnhof só é bem apreciada
ao anoitecer e nos recantos subterrâneos. Nunca se viu gente mais infeliz do
que esta. E basta olhar para a cara da pobre senhora Merkel, acossada pela
extrema-direita, para perceber que a felicidade não reina ali. Agora, olhem
para a bem mais modesta estação de caminho de ferro de Bolonha. A Stagione
Centrale. Nada a assinalar, pessoas com ar decente, viajantes velhos e novos.
Gente composta. No modesto bar da estação, Santa Margherita, encontramos uma
variedade gastronómica digna do Fauchon em Paris ou do Dean and DeLuca em Nova
Iorque. Sem exagero. E muito mais barata. Numa mesa com cadeiras de plástico de
design italiano, uma velhota beberica um copo de vinho tinto, um pequeno copo
de vinho tinto, com uma sanduíche de presunto de Parma cor de rosa e
transparente. Isto é o cúmulo da civilização. O expresso é perfeito, fazendo
morrer o Nespresso num segundo. Não se vê um bêbado. Aliás, com tantos vinhos e
tão generosamente bons, é raro encontrar-se um bêbado italiano aos uivos nas
ruas. Em compensação, sobram os bêbados da Europa do Norte. Uma viagem em
Itália chega para perceber que deviam ser os italianos a mandar na Europa. Eu
sei, a trapalhada, as berlusconices e tudo mais, mas não são cínicos como os
franceses, nem snobs, têm da melhor paisagem e cultura disponíveis, do mais
apurado sentido estético, e uma infinita alegria de viver. Têm livrarias e
bibliotecas maravilhosas. E a herança do Umberto Eco, o último intelectual
europeu bem encarado. Os italianos são um povo feliz. Na Emilia Romagna, de que
Bolonha é a capital, os habitantes têm índices de felicidade comparáveis aos do
Butão. Agora, experimentem passar um tempinho em Essen ou em Frankfurt e digam
se gostaram. A Itália e a Grécia têm apanhado com a crise dos refugiados em
cima e têm tido um comportamento exemplar. Não existe uma rua de Florença,
Nápoles, Roma, Bolonha, Milão ou Veneza sem a suprema abundância de africanos a
vender malas Prada chinesas. Não existe um beco mal-afamado onde não vagueiem
migrantes e refugiados das guerras do Médio Oriente, do Afeganistão e
Paquistão, do Norte de África. Nos esconsos da estação central de Roma, a
Termini, as máfias de contrabandistas resolveram apadrinhar o tráfico humano e
usar os refugiados menores como correios de droga e prostitutos. Existe um
grupo constituído apenas por egípcios, quase crianças, que os pais enfiaram nas
galeras do Mediterrâneo depois de terem gasto todas as poupanças para os
entregar aos contrabandistas. Acham que a Europa os salvará.
E nem vale a pena falar dos líbios e dos sírios.
A Polícia italiana vai desbandando mas no dia
seguinte eles reaparecem, e o tráfico continua. Dentro da estação, no bar,
calmamente, o cidadão italiano bebe o seu expresso ou o seu Chianti e come o
seu tramezzino ou cornetto, lê o seu jornal sem um sobressalto. Lá fora, desde
os atentados de Paris, carros militares e soldados com metralhadoras vigiam as
estações e os monumentos, as praças e as catedrais, e nem por isso a paisagem
se deprime. Existem manifestações pela abertura das fronteiras dos Balcãs aos
refugiados. Não existem manifestações noturnas de nazis, não existe uma Aurora
Dourada ou uma Marine Le Pen. Existe uma extrema-direita sem expressão
eleitoral perigosa. A Itália, que não é rica como a Alemanha, tinha todas as
razões para ter a sua Frauke Petra. Os seus “patrióticos” Pegidas. Que não se
dariam bem com os seus Corleones.
A alegria de viver ajuda muito. Num país onde a
beleza é uma coisa natural, a comida é gostosa, o sol brilha, as pessoas têm
menos tendência para o azedume. E ninguém, em Itália, acompanha carne com um
litro de cerveja ou bebe uma malga de café com leite por cima do peixe. Há que
dizê-lo com frontalidade: os alemães são uns tristes. E já que estamos na
sociologia de bolso e no empirismo filosófico, com quem preferia beber um belo
Barolo? Comer uma massa tartufata? Com a Frau Merkel, ou com a Frau Frauke, ou
com Renzi? Um país que deu à luz a Monica Vitti e o Antonioni não se pode
comparar com o país que deu à luz o Rainer Werner Fassbinder e a Dietrich.
Olhem para as caras.
A Europa está condenada. A tristeza da Alemanha
vai continuar a mandar em todos nós e só pode acabar mal. Estamos tristes e
acabaremos tristes. E, quem sabe, nas mãos de gente que não gosta de gente
estranha. Nem de viver."
in 'Expresso', 19.03.2016
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