(foto: andré)
«Parece que já ninguém gosta da Europa. Uns, porque têm saudades do mítico Estado-nação, das suas queridas fronteiras e polícias, das moedas nacionais e dos câmbios em que se perdia sempre duas
vezes, da inflação e das
desvalorizações;
outros, porque não gostam
da ideia de existirem jurisdições acima das nacionais onde os cidadãos se podem queixar dos abusos do seu
próprio Estado ou de haver uma lei comum
que estabelece as regras em matéria de direitos laborais, empresariais ou ambientais; outros
porque não querem mais imigrantes — seja de fora da Europa seja da própria Europa, como é o caso dos ingleses; e outros ainda
porque não querem uma política de defesa comum, uma política externa comum e, menos ainda,
uma política fiscal comum, como é o caso dos irlandeses e dos
holandeses. E há os que
estão fartos de que a Europa se meta nos
seus assuntos internos, impedindo-os de estabelecerem regras mais próprias de ditaduras do que de
democracias, como sucede com os húngaros, os polacos ou os aspirantes turcos. Finalmente, temos
os países do sul, que se queixam da falta
de solidariedade dos do norte, do sufoco das dívidas públicas e
bancárias a que estão sujeitos (e que em parte foram
contraídas para safar os biliões emprestados sem critério pelos governos e bancos dos países ricos do norte), e temos os países do norte que acusam os do sul de
gastarem o dinheiro em copos e mulheres (não, não são só o capataz holandês e o polícia alemão que pensam assim).
Os copos e
as mulheres ainda é o lado
para que dormimos melhor — sobretudo
quando a acusação vem de
um holandês. O que
nos custa é que quem
nos quer dar lições de bom
comportamento financeiro seja ministro das Finanças de um país que serve de sede fiscal às nossas vinte maiores empresas para lá pagarem parte dos impostos por
riqueza criada aqui e que aqui deveria ser cobrada. Porque o Eurogrupo, a que
Dijsselbloem preside, exige que todos cumpram regras comuns em matéria de controlo do défice público, mas não quer nem pratica regras comuns em matéria de fiscalidade — o que permite que a Irlanda e a
Holanda funcionem como oásis
fiscais e o Luxemburgo, que durante anos foi governado pelo actual presidente
da comissão,
Juncker, tenha então
funcionado como uma lavandaria de topo para as grandes empresas multinacionais
e nacionais.
Mas isso, o
direito de pernada sobre coisa alheia, vem na tradição da Holanda: sempre foram um povo
com vocação para a pirataria. Mesmo na chamada “Golden Age” da Holanda (um período que coincide com os sessenta anos
de reinado dos Filipes em Portugal), a prosperidade das Sete Províncias Unidas fez-se com base na
transformação das matérias-primas que outros, como os
portugueses, iam buscar longe e correndo todos os riscos, e a imensa frota que
então construíram destinava-se a pilhar as colónias alheias, em lugar de fundar as
próprias. Foi assim que os holandeses se
lançaram à conquista do Pernambuco português, (…)
Mas talvez
se devesse ir ainda mais além na instrução histórica básica do presidente do Eurogrupo.
Recordar-lhe que foram os países do sul, que ele tanto despreza, que edificaram as fundações da Europa que hoje conhecemos,
impondo os seus valores, hoje universais, contra os “bárbaros” do norte.
A Grécia deu à Europa a democracia e a arte; a Itália deu-lhe o Império Romano, uma das mais notáveis criações políticas da Humanidade, fundado na lei e na igualdade das
partes, e deu-lhe o Renascimento, contra o obscurantismo então reinante; Portugal e Espanha
abriram o mundo à Europa, e
a França deu-lhe os valores da Revolução Francesa. O que deu o norte de
comparável?
Sim, esta
Europa que Dijsselbloem simboliza e representa já não serve
ninguém e não interessa a ninguém. Os dez anos de presidência do português Durão Barroso,
com a sua política de
sempre, em todos os cargos que ocupou — ou seja, salvar a pele, nada fazendo — foram fatais para a Europa.
Mantendo-se sempre à tona,
flutuando sem sobressaltos perante cada problema, a Europa foi apanhada impreparada
perante as crises que a viriam a assolar e hoje navega à deriva, sem rumo nem praia à vista.
Esta Europa,
que daqui a dias celebra 60 anos de vida, foi uma extraordinária criação de uma notável geração de políticos europeus, que agora se arrasta
para um fim sem sentido nem glória, conduzida por uma notável geração de medíocres. Talvez o destino dos povos não seja o de saberem ser felizes, mas
o de estarem eternamente insatisfeitos. De vez em quando, isso é bom; outras vezes é trágico.»
in "Expresso", 25.03.17
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