(foto: cristina)
Em Buenos Aires começa a Primavera.
Ainda se sente o frio que vem do inverno acabado.
No aeroporto Ministro Pistarini há homens que oferecem o táxi para nos levarem ao centro. "Si, cuanto lo arreglamos ?"
Demoramos cerca de meia hora a chegar a Viamonte, atravessando alguns quilómetros dos extensos subúrbios de lata e tijolo em carne viva onde vive gente que é pobre.
Eram 7h30m e, por isso, despejámos as malas no hotel e fomos logo a uma cafetaria ali perto tomar o pequeno-almoço. Dois chocolates quentes e um par de media lunas.
O voo tinha sido chato, longo, de Lisboa uma hora para Madrid e de Madrid para B.A., durante a noite e, como é hábito, só durmo quando o avião está a levantar. Depois, zero, sempre desconfiado destes bichos. Ainda para mais, dei trela a um puto argentino que vinha sozinho e sentado ao meu lado. Era o Dario, do Boca e só queria falar. Regressava de umas férias na Europa para as aulas no liceu e devia apetecer-lhe tanto isso como dormir um bocado.
De modo que o pequeno-almoço soube bem depois do ar frio cortar a cara logo cedo que é a melhor forma de acabar com o torpor do raio de um avião.
Era domingo, e aos domingos as pessoas dirigem-se para a feira de San Telmo, a velha feira de antiguidades de Buenos Aires. Fomos para lá a pé.
À medida que nos aproximávamos, dava para adivinhar que íamos chocar com um tango vadio. A música que saía de um velho rádio ronfenho num volume razoável circulava entre nós como se fosse mais um turista. No meio da Plaza Dorrego dois dançarinos, ele de colete e ela de vestido preto e cabelo apanhado, cruzavam as pernas um no outro freneticamente e um chapéu no chão juntava os trocos. Demos uma volta pelas velharias. Quadros rafeiros, candeeiros arte nova oxidados, relógios de bolso parados, livros usados, latões, recipientes para o yerba mate, retratos de Gardel, Evita e Maradona, grafonolas e discos de vinil de 78 rotações enchiam prateleiras e prateleiras das lojas de San Telmo.
Distraio-me sempre a ver estas coisas que outros usaram, que viveram em salas, quartos e varandas e que acabam ali, meio mortas, vendidas por tuta e meia ou que alguns colectam do lixo.
Acho que alguém nos tirou da rua para almoçar. Anunciavam uma parrillada do outro mundo e com o peso a valer um terço do euro só se fosse estúpido é que os mandava dar uma curva. Sentámo-nos com calma a chupar o suco daquela grelhada mista de carnes de primeira. Ia já a meio quando escutei o som melancólico de um bandonéon cheio de pena e abandono. Se os portugueses têm saudade, os porteños têm Piazzolla. Piazzolla não é música apenas. É toda a tristeza de um povo enfiada nos acordes de um instrumento que chora tudo o que tem. Ou então eram os dedos do maestro.
Já não sei como é que fomos dali para o monumental obelisco da 9 de Julho, a maior avenida do mundo com sete faixas para cada lado e dez minutos para atravessar, mas antes ainda passámos na Plaza de Mayo, onde, ano após ano, em frente à Casa Rosada, as mães de Maio se concentram para lembrar os "desaparecidos" do regime de Videla. Só depois é que nos enfiámos nas ruas do Retiro, outro bairro de Buenos Aires.
Buenos Aires é uma cidade de barrios.
Passaram 10 anos desde que pisámos a Argentina, país dos seis continentes.
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