segunda-feira, 21 de julho de 2014

"Tonight You Belong to Me"


para a Susana
(das guaridas)

I. É realmente interessante ter o privilégio de assistir ao harmonioso processo de amadurecimento de um homem, na sua longa caminhada moral. A solo, sem se poder esconder. É a segunda vez para tanta gente, diz ele. Mas para o sujeito que vive de partilha em partilha não há salvação.
Eddie Vedder vem progredindo honesta e solidamente como músico e poeta no trilho do Great American song-book, numa curiosa peregrinação de busca eterna do Eu, com os outros.
Quatro anos depois de o termos visto acompanhado da sua tribo pessoal que transformou os Pearl Jam em mais do que uma simples banda, talvez uma família de primos da América, este wrestler da sociedade apresenta-se em palco sem rede, bem ciente de que há certas coisas que os outros não podem fazer por nós. Tão longínquo já da primeira vez em Cascais onde o público gritava "Portugal ! Portugal ! Portugal !"
Aqueles que acham que já o viram uma vez e portanto... chega, ou que presumiram que vinha tocar cavaquinho e ganhar uns trocos extra, perderam perto de três horas do compromisso e entrega desmesurada do indivíduo em construção.
Cercado por uns milhares de almas e pela fogueira que foi alimentando, sempre entre a fronteira de se poder limpar ou imolar, fez-nos compreender que os saltos ao longo de todo o concerto das suas Gibson acústicas para a Fender Stratocaster - branca imaculada como a de Hendrix (a quem lembrou como Cobain, outro grande canhoto das guitarras) -, e para o inevitável ukulele, e deste para as primeiras, são o oxigénio fundamental de quem conhece bem os perigos da paixão e a vertigem de mergulhar nas profundezas de um só instrumento até ao fim, até à loucura. E, por isso, nessa comunhão total de cordas, letras e acordes, salva-se constantemente quando se transfere de uma guitarra para outra.
Eram duas da manhã quando começou, depois da chuva do princípio da noite assim como para anestesiar a ansiedade, e foi-se prolongando até ao momento - já a meio deste exorcismo pessoal - em que alguém da organização lhe veio dizer que podia tocar "as long as I will". Às 4 e meia achámos mesmo que queria ver o Sol acender-se entre nós. O sofrimento de tanta violência interior arrancada à bruta não permitiu.
Para trás ficava "Into the Wild", em prece pelo tio John, dez anos mais velho e falecido há poucos dias. "Não estava ainda preparado para me despedir. Daí esta camisola que trago vestida, a mesma que usava quando o vi pela última vez no hospital."
Ficavam também algumas canções salteadas para ukulele, além dos temas maiores do cancioneiro PJ. Mas foi com os tributos ao parceiro Neil Young, a Dylan, aos Beatles e até aos Pink Floyd, que a mensagem do peregrino se encarniçou e começou a espalhar.
Com "Masters of War" incitou aquele pequeno mundo à reflexão: "Being anti-war doesn't mean you're pro-one side. It means you're pro many things. Pro-peace, pro-understanding, pro-diplomacy, pro-Love, pro-soldiers because you don't want them to die for no reason.", altura em que pediu licença para desapertar as notas de 'Imagine', "the most powerful song I've ever heard.", colocando aquela comunidade a ranger os dentes com ele. Por Gaza e Israel, num certo tipo de oração. Peace.
Recordou depois o lado terrivelmente efémero e dramático da vida num avião de civis que é abatido noutro conflito, acabando com a vida de mais 300 inocentes, pessoas que se calhar o tinham visto dias antes em Amesterdão. Foi quando escutámos "The needle and the damage done".
Enfim, o sacrifício feito no altar deste hooligan que arranca o escalpe às vísceras justificava cada verso entoado pela multidão, de quem se despediu ao som de "Rockin' in the free World". Sagrado.
Eram quase quase 5 da manhã e só faltava uma hora para o Sol dar à luz.



II. Uma chuva, apenas inesperada para uma Organização demasiado ingénua ou optimista em relação ao tempo que se avisava para o Meco, fez atrasar o concerto que a apaixonada Cat Power tinha preparado. Também o fez abreviar.
Deixou 5, talvez 6 canções ao todo, roucas, belas e poderosas, que a voz da Cat apressadamente mandou para nos penetrarem. E a declaração de amor eterno no dueto com Vedder. "Tonight you belong to me".
E será sempre assim.

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