segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

viagem a preto e branco

O caminho para Oswiecim é bonito.
A expectativa indizível. Num quase-medo.
1999. Estamos no 14º dia do inter-rail. É Setembro e daqui a um mês começam as aulas. Se tudo correr bem será o último ano na Faculdade. Como sempre juntamo-nos em Santa Apolónia.
Para trás ficam os pais, irmãos e namoradas. Também já deixámos a Itália, Dubrovnik, Sarajevo (!), Zagreb e Budapeste.
Quando começámos a preparar o trajecto da viagem, desenhada para se enfiar nos Balcãs, serpentear nos países de Leste e longificar nos Bálticos, marcámos logo Auschwitz, o nome alemão da cidade de Oswiecim. A nossa jovem consciência da História mandava que Cracóvia (onde íamos pernoitar) passasse também pelo conhecimento do mal. 
De Cracóvia a Auschwitz é uma hora e quarenta de comboio.
O caminho é bonito. Atravessamos uma paisagem de álamos, pinheiros e campos de bétulas que cercam alguns lagos. Aprendo que "Birkenau" quer dizer floresta de bétulas. As aves migratórias já se dirigem para o Sul e reparo nas minas de carvão.
Escolhi fazer os últimos dois quilómetros que separam a estação e o maior campo de extermínio nazi, trilhando o percurso marcado pelos velhos e enferrujados carris da antiga linha que transportava os prisioneiros rumo a Birkenau. Quis seguir no meio, como os vagões. Procurar o derradeiro sentido. Onde agora nascem ervas e flores.

Há alguns turistas. Sobretudo malta nova. Mas só se ouve o ambiente. O vento que sopra entre as folhas das árvores e os nossos passos.
Toda a gente sabe onde é que vai. A simples aproximação é impossível com ruído.
Ao fim de vinte, trinta minutos: "Arbeit Macht Frei", que ainda sobrevive no portão. Ninguém se prepara para um impacto assim. A esperança defunta de ironia.
Caminhamos um bocado. Olhando para o espaço e para inúmeros barracões em tijolo. Todos metodicamente organizados. Em blocos. E ruas.
Não falamos uns com os outros, mas todos pensamos no mesmo. No insuportável peso deste lugar. Ali a morte ainda respira. Está calor, mas não parece. Vemos a cores, mas cheira a cinza. 
Passado algum tempo, o Alberty e o Renato decidem voltar para Cracóvia. Eu, o João Tiago e o Ordep continuamos.
Precisávamos de mais tempo. Acho que esperávamos que o silêncio falasse.
Não percebíamos. Porque as perguntas, por muito que já se tenha lido e escrito, acabam sempre sem resposta.
Entramos nalguns dos barracões. Reuniram todo o tipo de objectos pessoais que os guardas retiravam logo a quem chegava. Milhares de malas, sapatos, óculos, escovas de dentes, armações dentárias, pentes, o cabelo. O cabelo, meu Deus, com que estofavam colchões. 
Percorremos as listas de prisioneiros. Os retratos. Tantos, tantos não-anónimos. As datas de entrada e do decesso. Tudo meticulosamente registado. Leio alguns nomes. De crianças sobretudo. Cristo ! 
Noutro lado, os gabinetes de Mengele. Frascos de vidro com fetos conservados em formol. Catalogados. Crânios serrados ao meio para experimentação. Catalogados. Explicações sobre o que fazia aos que eram gémeos. Solução final. Zyklon B. Prateleiras e prateleiras.
Saímos para respirar um pouco.
Depois andamos um bocado mais e sentamo-nos não me lembro bem aonde. Temos de parar. 
É quando reparamos numa chaminé. Como de uma fábrica. Entramos noutros barracões. Os fornos crematórios.
Mordemos os lábios. Calamos ainda pior. Não desviamos os olhos. Parece que se lembram.
A película a preto e branco que o Ordep trouxe de Lisboa faz o resto. Peço-lhe a máquina para as mãos e faço uma fotografia.
Leio o que um sobrevivente, Tadeusz Sobolewicz, diz sobre a arbitrariedade da vida no campo. Qualquer um dos que morreram podia ter sobrevivido, assim como ele podia estar entre os que morreram.
A noite começa a cair e decidimos voltar à vida. Apanhamos o comboio de regresso para virmos ter com os outros. Estão à nossa espera num bar qualquer com umas cervejas na mesa. Precisávamos. Acho que nunca tanto.
Não me recordo se alguém pronunciou palavra no caminho de volta.



[foto: andré]

Nunca tinha escrito sobre este dia, e foi difícil. Os 70 anos da libertação do horror têm obviamente a ver com isto.

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