[Pandora em "A Balada do Mar Salgado",
de Hugo Pratt]
de Hugo Pratt]
Conheceram-se em Janeiro. Ele sabia porque foi num dia frio e o fim do ano antigo tinha sido há pouco tempo.
Ela vinha metida dentro de um casaco verde comprido. Comprado talvez numa loja romântica de Berlim ou Nova Iorque. Enfiada nuns óculos escuros para não se lhe tocar. Por se ter levantado cedo. Foi então que se viram. Os olhos bateram-se e ele estremeceu. Num choque. Violento e sem explicação. Inesperado para os dois. Não se esperavam assim. Não se esperavam sequer.
Ele afundou os olhos no chão, nos papéis, para onde pudesse fugir. Melhor assim. Espreitava.
Estava zangado. Tinha que estar. Estava assustado. Com o que não percebia. Como podia alguém flanar tão inocente sobre o real. Como podia alguém parecer pairar indiferente sobre aquele mundo. Da chatice. Do problema. Como ? Zangou-se. Falou-lhe mal. Apertou-a. Censurou. Talvez tenha abanado a cabeça. Zangou-se. Ela não respondeu. Sorriu de leve.
Estava zangado. Tinha que estar. Estava assustado. Com o que não percebia. Como podia alguém flanar tão inocente sobre o real. Como podia alguém parecer pairar indiferente sobre aquele mundo. Da chatice. Do problema. Como ? Zangou-se. Falou-lhe mal. Apertou-a. Censurou. Talvez tenha abanado a cabeça. Zangou-se. Ela não respondeu. Sorriu de leve.
Depois disse-lhe que tinha que fazer uma coisa. Que ia fazer uma coisa. Ela não queria. Ele explicou. Deu-lhe várias razões. Todas possíveis, todas válidas. Nenhuma verdadeira. Como podia aquela honesta doçura, a verdade das palavras, a franqueza da verdade, a crua realidade entrar no mundo dúbio dos homens ? Num ringue torto e falso ? Como podia aquela vida em estado puro, aquela aparente loucura ir para o meio de uma rua suja ? Não podia. Ele não queria. Só se não o pudesse mesmo evitar. E mesmo que só lhe apetecesse morder em quem lhe queria fazer mal. Ele, que fora feito para a luta, que se pelava sempre por uma, que não virava a cara, que por dentro só pensava em desfazer o sacana, assustou-se. Por ela. Lembrou-se que atacar era também não estar lá. E convenceu-a. Não convenceu. Mas fê-lo na mesma.
Nunca mais falaram. E o tempo passou. Muito. Imenso. Sem custar.
Um dia toca o telefone. Várias vezes. Nunca estava. Ela finalmente atende. Tratam-se por você. Ele não aguenta. Pergunta-lhe se pode por tu. Ela pede "Por favor!". Encontraram-se então. De novo o casaco verde comprido. Uma, duas, várias vezes. Coisa nova. Amor. Amor é amor. Escrevem-se. Algumas vezes. Depois deixam. Voltam. Mas pouco. Encontravam-se. Quando se viam havia tudo. Como se sempre se soubessem. Nem que fosse só num beijo roubado ao pescoço.
Mas havia um tempo. Cruel, feroz e assassino. A ele revoltava a vertigem do tempo. Não tinha tempo. Nunca. Para dizer o que queria. Para meter cá fora o que lhe rebentava por dentro. Confuso e sem jeito ele fazia qualquer coisa. Confundia. Não sabia como. Parecia outro. E por estarem longe, pareciam outros. Que não se conheciam.
Se ele visse o tempo, agarrava-o. Como um miúdo. Como um homem, pelos colarinhos. Contra a parede. Com força. Olhava para dentro e ouvia o Jeff Buckley dizer que era "too young to hold on, and much too old to break free and run".
Se ele visse o tempo, agarrava-o. Como um miúdo. Como um homem, pelos colarinhos. Contra a parede. Com força. Olhava para dentro e ouvia o Jeff Buckley dizer que era "too young to hold on, and much too old to break free and run".
Ela também queria o tempo. Com tempo. Pairando. Flanando. Sem pressa de o matar. Haviam de se reencontrar.
Ele sabia que podia-se encontrar com a dor. Que dor, se é vida ? Que a vida só vale a pena se vier toda. Cheia. Dos bons e dos maus cheiros, e daqueles que se demoram a perceber.
Queria partir todos os relógios. Rasgar os calendários e dormir com o cheiro dela.
Queria partir todos os relógios. Rasgar os calendários e dormir com o cheiro dela.
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