Acordei ao som da desordem, a enorme e alegre desordem de Marrakesh. De lá de fora brotavam milhares de sons. Diferentes daqueles que conhecemos. Vozes imperceptíveis, alaúdes, flautas berbéres, os crótalos, um instrumento musical feito com uns pratinhos de latão, guinchos disto ou daquilo, o corropio das pessoas, bicicletas, o chiar das carroças, o roncar velho das motoretas, algumas buzinadelas também.
Quis ir logo para o terraço para ver a impressionante Kutubia, a magnífica mesquita de Marrakesh. A Kutubia parece que nasceu ali. Como uma palmeira. Saiu do chão e ergueu-se até dizer “Daqui vejo tudo!”.
Inspirado por aquele deslumbre e tomado por uma estranha fé, decidi ir até ela. Não me deixaram entrar. “Ocidental.” Devo ter protestado qualquer coisa. Nunca gostei que não me deixassem passar. Talvez tenha dito que estranhava não ser convidado. Regressei ao Hotel onde a malta ainda dormia. Pelo caminho, parei numa das muitas barraquinhas da Jemaa el-Fna carregadas de tabuleiros com deliciosas e sumarentas laranjas que vêm das praias de Essaoira. Moeram-me duas ou três e bebi um sumo. Ah!
Perguntei à rapaziada quem é que queria enfiar-se comigo nos souks. Ainda não eram onze da manhã e o cheiro intenso a borrego já invadia a medina. Peles a curtirem-se ao sol, homens a fazerem tintas que espremem de dragoeiros criando coloridas misturas. Cheiros depois diversos, de ervas e especiarias, das buganvílias que crescem nos terraços e descem pelas paredes, de óleos extraídos de plantas que nunca vi.
É verdadeiramente uma cidade de emboscada. Pressinto que me vai custar deixar esta terra dos diabos! Facilmente se fica refém, perdido num maravilhoso dédalo de sentidos.
Chegados a este dia era impossível não estar rendido à simpatia destes fulanos de trato fácil e espírito aberto. Resolvi mandar os primeiros postais para Lisboa.
A meio da tarde, a medina está em êxtase. Por todo o lado se ouve negócio. Fomos ver o artesanato. Há quem compre candeeiros. Uns só pelo gozo entretêm-se a discutir o preço de uns tapetes. Eu viro-me para um prato em cerâmica. “Quanto custa?” “Ohhh, não! Para quem é?” Digo que é para oferecer aos meus pais. Pede muito. Regateio. Explico-lhe que não sou americano, nem alemão. Pergunta-me quanto é que dou por ele. Ofereço-lhe um quarto do que ele pede. Ele parece ficar ofendido. Faz-se. Diz que nunca foi tão insultado na vida. Mas como simpatiza comigo, diz que me baixa o preço. Pouco. Digo-lhe que ainda não trabalho, que sou estudante. “Pas d’argent!”. Ele coça o bigode. Pede menos agora. Ameaço que me vou embora. Pergunto-lhe se está a brincar comigo. Se é assim que trata toda a gente. E ele diz que o quero levar à ruína. Que tem cinco filhos para alimentar em casa e uma sogra. Respondo-lhe que não tenho culpa disso. E que não sou eu que lhe vou pagar a reforma. Mas subo um bocadinho, avisando-o de que é o meu último preço. Agora, parece mais interessado. Já diz que compreende. Que somos capazes de nos entendermos. “Afinal, somos homens...” Elogia a qualidade das peças que vende. “Pintadas à mão!” Digo-lhe que já vi muitas assim. Até em Portugal. “Impossível! O Ahmed não manda nada para fora.” Pergunta-me se quero levar o prato por 400 dirhams, metade do que pedia no princípio. Apertamos as mãos e fechamos negócio. Ele sorri e eu também.
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