Lisboa. Já passa um bocado da meia noite e a Vespa talvez ziguezagueie um pouco mais do que devia. E não é só para fugir aos carris dos eléctricos ou não tropeçar nos vestidos que passam na rua.
Descemos a Madalena para aterrar no Martim Moniz onde os pirilampos da polícia já mandam encostar.
- Boa noite, Senhor Condutor.
(enquanto bate a Continência)
O Condutor não fica sem voz, não perde a calma e também faz a Continência. Será louco ?!?
- Venho a cumprir a lei, Sr. Agente.
- Isso é o que vamos ver. Documentos, por favor.
- Tome.
- Está-me a dar só o registo. Carta e Seguro ?
- Certo, aqui os tem.
- Bebeu ?
- Sim, acabámos de jantar. Bebi um vinho, claro.
- Já alguma vez soprou no balão ?
- Sim.
- Então já sabe como é. Sopre aqui até eu dizer para parar.
- (...)
À primeira não sopra bem. O instinto funciona assim.
À segunda.
- Ui. 0,87.
A degustação dos vinhos, bem acamadinhos, tinha feito os primeiros estragos. As papilas estavam todas acordadas e não davam mostras de cansaço ou timidez.
O Pedro tinha-nos dito que a prova podia ser muito boa ou excelente. 6 vinhos para acompanhar cada prato. E cada prato decide o dono da cozinha. Gosto. Cada vez com menos paciência para escolher o que comer. Devia ser sempre assim.
"O objectivo não é embriagar-vos, embora possam."
Um Bruto para limpar, depois os brancos. Para começar um Casal Santa Maria, de Lisboa, os Douros, um verde Alvarinho, um tinto para a carne. Acabamos com um Madeira doce, quando já nos entregámos completamente à nossa sorte. Toda a noite os vinhos a tentarem bater o prato que vinha para a mesa. A conseguirem.
Do São Pedro de Alcântara adora-se Lisboa.
- Ui. 0,87.
Mas é aí que o homem salva o homem, e nos são dadas provas da compaixão de que os portugueses são felizmente vítimas abençoadas. Porque esta merda não é a puta da Alemanha, diz o irmão de sangue.
A verdade é que ainda estou para perceber, mas...
- Ó Sr. Condutor, porque é que não vai ali dar uma volta, beber um café, e depois regressa para soprar novamente ?
O Sr. Condutor vai. E a compaixão humana também o segue. Hoje deve ter saído com alguma espécie de auréola e ainda não percebeu. Ou então são os olhos de cordeiro manso. Ou a continência que fez quando chegou ao polícia. Ou a mamma atrás a pedir clemência, que tem 3 filhos.
Num dos botecos da praça (que matam a sede com o que for preciso), aparece-nos um tipo que estava a olhar para a cena. Parece berbére e só lhe falta o turbante. De calções e dois brincos a reluzir, pergunta-nos: "Então, quanto é que acusou ?", e logo a seguir: "Eh, pá ! Venham cá. Sou dono disto. Bebe esta limãozada e um café e esta água."
Quero pagar e ele não aceita. "Ouve, já me apanharam várias vezes. E tenho a mota toda quitada, por isso não posso sair agora, senão estou fodido. Ficamos agora aqui. Não sou português." E põe-me o braço por cima.
Confirmo que a mota dele está toda a cair e com fita gomada a segurar os bocados. Confirmo que só diz que não é português porque agora ninguém quer ser deste país. Como o tipo que nos prepara o remédio. Filho de pai suiço, mas nascido em Loures de mãe portuguesa.
"Também não sou português. Da última vez que me apanharam, tinha 2,21, e já tinha ido a casa e dormido !"
Afinal, não é um boteco. É um clube.
Acabo as zurrapas miseráveis que me arruinam o jantar e assassinam as papilas. Mas salvam a humanidade e regresso à fiel. Olhei para ela com pena. Parecia só. A Vespa esperou 5 anos pelo nome mas sai daqui baptizada: a Fiel.
- Vá-se lá embora, Sr. Condutor. Esta polícia nunca o mandou parar. Vão para onde ?
- É já para ali.
Ele acredita. Todos merecemos uma oportunidade.
Olhamos à volta. A massa de turistas já percorre o Rossio e todas as avenidas.
* também se podia chamar as minhas aventuras na república portuguesa, mas depois era plágio.