terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Na minha Cara




Não era para ser uma experiência sociológica ou antropológica. Era só mais um jogo. Com o Sporting, sim. Mas mais um jogo.
Se já tínhamos ido ao estrangeiro ver o Benfica, se fomos às Antas (twice e quando eram Antas), se acompanhamos o Benfica em todos os jogos das redondezas (seja em Belém, no Estoril ou em Setúbal), porque não atravessar a rua e ver se há vida do outro lado da Circular?
Não dou dinheiro ao rival ! Excelente razão e sempre fui fiel. Mas se o mano querido tratou de arranjar bilhetes.... e de graça....
Então vamos.
Começamos a ir na véspera. Falamos com os nossos amigos lagartos. Perguntámos pela porta de entrada. Se iam na guerra. Oferecemo-nos para lhes pagar umas cervejas antes do jogo. «Nem penses !, não vou numa de muito amiguinho. Depois, é na boa.», disse-me um, e amigo do coração !
Não percebíamos. Esta espécie de ódio. Tudo bem. Vamos só nós e nós.
Dentro do metro, começamos a ver sportinguistas. Nunca pensei que fossem tantos, comento.
Avisa-me o Calhas: «Mete isso para dentro. Já lá há granel. E estão a queimar cachecóis.» Ok (até porque não vou sozinho). Mas quando entrar no estádio, ponho-o ao pescoço. Não se entra em casa do adversário sem nos apresentarmos.
Saímos do metro e vemos o Sérgio. Quase nos ignora. Quase foge. Depois compreendo: não quer que o vejam connosco. Mando-me para o caralho e eu idem.
A seguir vamos a umas roulottes. Pedimos duas imperiais. «Não temos. Mas venha depois do jogo que nessa altura já temos.» Depois ???!! Estarão à espera que a gente venha a seguir para... sei lá....uma soirée ???! Para tosta de camarão ? Umas roulottes, que só servem bifanas e cerveja, e deixam que ela acabe ? Esqueceram que era derby ? Vêm para uma briga de chumbo com navalhas no bolso ?
Adiante.
Começamos a encontrar malta amiga, o grande Ricardo, d'A Tasquinha do Lagarto, o Afonso, dos jogos de sábado de manhã, outros gajos. 
Entramos no estádio. O barulho é realmente ensurdecedor. Horrível. Parece que entrámos num pavilhão. Apesar do estádio ser feio como a noite, a sua cobertura e a forma como as bancadas foram colocadas, construídas para fecharem sobre o relvado, tornam o ambiente insuportável. Estamos dentro de um ovo. Turco.
E depois, para eles é o jogo do ano. E o jogo do título. Vieram todos.
Mas temos sorte. Estamos mesmo ao lado dos NN Boys. Os nossos índios queridos. O João Tiago diz-me para olhar bem para os nossos "Zé Pequenos". 
Eu olho, mas em quem reparo mesmo é num negro enorme, careca, de óculos escuros e com dois ou três brincos na orelha direita, de fato de treino do Benfica. Viu o jogo todo de pé e está logo na primeira fila e junto ao gradeamento que os separa dos sportinguistas, bem por cima de uma bandeira do Uruguay (de homenagem ao Maxi) que tomba para o fosso de Alvalade. Parece que estoirou do 'Pulp Fiction'. É isso ! É o Marcellus Wallace. Saber que ele está ali dá-me um gozo danado e fico mais tranquilo. Já está alcunhado.
Quinze ou vinte minutos depois de começar, entra mais uma língua de 500 adeptos do Benfica para o meio da bancada onde estamos. Os lagartos estão chocados. Como é que isto pode acontecer ?
A primeira parte é feia, feia. Não jogamos nada. Mas eles também não.
Ao intervalo não saio da minha cadeira. Os outros sim. E continuam a encontrar amigos e conhecidos. Até podiam trocar cartões profissionais. Percebo. Para eles é o jogo do ano. E o jogo do título. Vieram todos.
A segunda parte é quase igual de chata, embora com o Sporting a dominar. Mais cantos e mais bola no pé. O Benfica não consegue segurar uma. Quanto mais trocar !
Mais ou menos a meio da segunda parte, o speaker informa que estão 49.076 adeptos nos estádio. «É o record de Alvalaaaade !» Quando se calam as palmas, os "Zé Pequenos" começam: «Assim se vê a força do S.L.B. !» Que ironia ! Que sublime !
E o jogo continua. Mole que dói.
Aos 87 minutos o Sporting faz o golo. O estádio parece que vem abaixo. Ficam loucos. De ódio. Não é alegria. Espumam de raiva por todos os lados. Gritam e empurram-se à nossa frente como dementes. Fazem gestos com os braços e estão com os olhos fora das órbitas. Parece um Júlio de Matos em ponto maior.
O speaker berra: «Sporting 1, Visitante 0.»
Visitante... Percebo agora melhor a reacção do Sérgio. O processo de estalinização do clube impede-os até de pronunciarem o nome do adversário.
Estão exultantes. Jactantes. E o jogo quase a acabar.
Não vou dizer que acreditei até ao fim. Estava com mau feeling e aos 93 minutos deixámos os nossos lugares. Apenas para ficarmos a ver os últimos segundos mais do alto, já perto de uma das saídas.
E é aí que acontece o grande momento de humor. A tragicomédia. Parecia ópera. 
A bola pinga para a grande área do Sporting numa chouriçada que vem do meio campo, Jonas luta entre os defesas e, no meio daquilo, a bola sobra para Jardel (e logo quem !) que a chuta (talvez o único remate que fizemos no jogo todo) e enfia no fundo das redes. Nessa altura somos nós que saltamos. Aliás, eu só recebo os saltos consecutivos do João Tiago a quem amparo como se fosse seu pai, e enquanto mordia alguns palavrões que me tinham ficado entalados na garganta. 
Este golo, confesso, apanhou-nos sem aviso. Fico parvo. Incrédulo. Dirigimo-nos para fora do estádio. 
É quando saímos que me apercebo de outros benfiquistas, desnorteados como nós. Sem saber para onde ir. Como se experimentássemos pela primeira vez a liberdade. Como se acabássemos de sair de uma prisão ou tivéssemos estado reféns. Reconheço: estamos sem noção.
Quando começo a digerir o que acabou de acontecer, não consigo parar de rir. E lembro-me outra vez do Marcellus Wallace. Do filme. E de como o Jules explica a uns miúdos que se prepara para "despachar" que o Marcellus Wallace «don't like to be fucked by anybody except Mrs. Wallace.»
Ainda hoje, quando me lembro do que se passou no final do jogo, fico com esta cara de Joker com que estou a escrever o post.
Não percebíamos de onde lhes vinha o ódio. Porque é que recusavam uma cerveja antes do jogo. Teríamos percebido melhor se não as quisessem depois.

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