terça-feira, 31 de janeiro de 2017

domingo, 29 de janeiro de 2017

Overground



«A minha obsessão com a guerra na ex-Jugoslávia é a de corrigir a mitologia, porque a mitologia acerca desta guerra foi absolutamente falsa. A televisão transmitiu a ideia de que se criava um mundo novo, e não o que aconteceu na Terra. É o meu segundo filme sobre este período. (...) Uma frase de William Faulkner foi um dos principais motores deste filme; é aquilo que me é dito pelo pastor no momento em que quero matar-me: "Estúpido, se te matares, nunca te irás lembrar desta bela mulher [a linda e magnífica Monica Bellucci], nem do amor." (...)
(...) uma história dramática que é facilitada e suportada pelo ambiente exterior, pelo visual dramático e gráfico da Herzegovina, que fica a sul da Bósnia, mais próxima do mar, que, aliás, se pode ver a partir daquelas montanhas. E o filme, enquanto história de amor, é a minha segunda resposta àquilo que era a mitologia oficial imposta pelos media e por tudo aquilo que víamos e ouvíamos. Quis deixar espaço para o amor como ideia humana suprema.»

Emir Kusturica, in 'Medeia Magazine'

No Monumental, que ainda resiste.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

há futuros que nunca mais chegam

 

E para quando o tomo 3 ?

domingo, 22 de janeiro de 2017

Winter Tales



Lendas da Premier Lesgue: e há muito mais de onde estes saíram.

sábado, 21 de janeiro de 2017

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Deploration Day


('The New Yorker')

«Um dia, vi um homem parar um carro pobre, numa estrada de terra vermelha, à entrada de uma ponte. Sobre um pilar estava uma bacia de esmalte rachado e nela laranjas pequenas. "Quanto?", perguntou o homem com uma camisa modesta. O miúdo negro disse: "Dois angolares." Sem outra palavra, o homem abriu a mala do carro. O miúdo fez rolar as laranjas na mala. O homem pôs na palma da mão estendida uma moeda de cinco tostões, um quarto do preço pedido. O miúdo nem esboçou um protesto, ficou na berma a ver o carro partir e a sentir a poeira assentar.

Um dia, li um camponês russo a falar com um dos irmão Karamazov. Tudo no camponês era subserviência. E tinha o filho ao lado. O Karamazov não bateu, esmurrou ou pontapeou o camponês - gestos brutos que poderiam ter passado por luta violenta. Esbofeteou-o, com pancada seca e calma, de quem sabe que nunca teria reação. Nada doeu mais do que o filho ao lado.

Um dia, na ala militar do aeroporto de Bogotá, estive na conferência de imprensa dada pelo embaixador americano. Ele falou sobre a luta contra os narcotraficantes e a esperança de apanhar em breve Pablo Escobar, o capo de Medellín. Depois, o embaixador disse que tinha mais declarações a fazer mas essas eram para os americanos e os da imprensa estrangeira. Os jornalistas colombianos saíram, cabisbaixos, expulsos em sua casa.

Um dia, entrevistei um líder guerrilheiro, num jango, enorme cubata circular. O líder esperava--me ao fundo, e as paredes do jango estavam cheias de dirigentes guerrilheiros e conselheiros do líder. Ao entrar, reparei, nunca soube porquê, num jovem de barba escassa e casacão escuro (era cacimbo, inverno austral), sentado à entrada. Finda a entrevista, o líder acompanhou-me à entrada, braço sobre o meu ombro. De repente, fez-me rodar e encontrei-me frente ao jovem de casacão, já de pé. "O senhor jornalista sabe quem é?", perguntou o líder. Adivinhei mas disse que não. "É o Wilson que vocês em Lisboa dizem que matei. Não o quer entrevistar?", disse o líder, e logo apareceram dois microfones. "Não entrevisto presos", disse eu. O jovem tinha os olhos mortos e foi mesmo morto, semanas depois, ele e a família.

Um dia, eu ia de elétrico e vinham duas peixeiras da Ribeira. Elas eram cabo-verdianas e falavam crioulo entre elas. Ao passar pelo Rato (os elétricos ainda por lá passavam), um passageiro endoidou de ódio e pôs-se a mandar as mulheres "para a terra delas." Havia lugares vagos mas elas não tinham ousado sentar-se por causa do cheiro das saias largas. Os insultos do homem apanhou--as com português curto e calaram qualquer resposta. Pousaram os olhos no trabalho, nas canastras deitadas no chão. Nem pareceu terem dado conta dos pescoços que não se viraram. Mas deram.

Um dia, eu estava com um militar, que então era do meu lado, a dizer a uma pessoa detida, porque do outro lado, que sim, podia pedir ao soldado de plantão para ir comprar cigarros à messe. Regressado o soldado, o preso deu--se conta de que, afinal, também não tinha fósforos: seria que lhe podiam acender o cigarro? "Ah, era para fumar? Isso, na cela, não pode", ouvi o "meu" militar a dizer, gozando com o detido confuso.

Um dia, era noite de verão, eu ouvia um homem a assobiar numa esplanada. Ele estava sozinho à mesa e bebia cerveja. Assobiava mambos e boleros, as janelas abriam-se e às varandas assomavam suspiros. Ele sabia e gostava do seu sucesso, na sua rua, mas fazia de conta que não o via. No fim de um bolero de Lucho Gatica, ele ia aclarar a garganta com um gole mas o copo voou até ao chão da esplanada. A mulher do homem do assobio estava com uma mão à cintura e a outra a apontar a casa: ala! Ela nunca produziu outro som, senão o copo a estilhaçar-se. Sempre calada, com o silêncio da autoridade que nunca conheceu resposta. Ele ia à frente dela, cabeça enfiada nos ombros, olhando o passeio, indiferente à rua e à humilhação. Mas não estava.

Um dia, um guarda-costas que me acompanhava em Argel, perguntou-me se eu sabia o que era uma bûche de Natal. Disse-lhe que sim. Era o bolo em forma de tronco de árvore que os franceses comem no fim do ano (como o nosso bolo-rei). Por essa altura, os terroristas islâmicos punham bombas por toda a Argélia e degolavam os ímpios que se expunham. O meu guarda-costas era bom muçulmano, mas tinha saudades da bûche, da infância com vizinhos franceses. No Natal passado tinha sabido de uma padaria que as vendia às escondidas. Foi lá, saiu pela porta de trás mas julgou adivinhar olhares ameaçadores. Abriu a camisa e escondeu o bolo, coseu-se às paredes e apressou o passo. Entrou em casa e tirou o bolo amassado, o chocolate já delambido - os filhos e a mulher olhavam-no, e ele chorou, derrotado. O meu guarda-costas era tropa de elite.

Um dia, depois desses dias que me formaram, hoje, eu dei-me conta de que um homem que varreu os adversários do seu partido amesquinhando-os, que apoucou deficientes, que rebaixou o heroísmo autêntico na guerra de um correligionário seu (ele, que para fugir dessa mesma guerra pretextou doenças que não tinha), que se me apresentou, em palcos públicos, sem compaixão por pais que perderam o filho, que achincalhou as doenças, verdadeiras ou inventadas por ele, da adversária, que levou a humilhação como a arma principal da luta política, um dia, dizia eu, vou ver esse homem a tomar o poder mais poderoso do mundo. Contra ele recuso-me, neste dia, a discutir as ideias dele, políticas, económicas ou ecológicas. A partir de amanhã, certamente. Hoje, tenho a dizer, tão-só, que é um dia desgraçado.»

"Hoje", por Ferreira Fernandes, in DN.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Gratidão é pouco



Mário Soares (1924 - 2017)

Quando acompanhou o pai a um Rossio a deitar por fora de gente para assistir ao comício de encerramento das Presidenciais de 1986, ele já sabia quem era o Mário Soares. Tinha quase 9 anos e as conversas, por vezes acesas, nos jantares de sábado em casa dos Avós, sempre lhe tinham chamado a atenção para aquele nome sonoro, curto e térreo. Mário Soares, que o pai defendia sempre, quando um tio ou tia mais inflamados o acusavam disto ou daquilo. Mário Soares, o homem da Liberdade – isso era certo ! -, do lado certo da vida, como Olof Palme, Willy Brandt ou Mitterrand. Mário Soares, o nosso Marocas.
Já sabia quem ele era, embora pudesse saber ainda pouco do que ele tinha feito. De certeza que o pai já lhe tinha contado dos tempos da ditadura, do 25 de Abril, da chegada a Santa Apolónia, do discurso na Fonte Luminosa, talvez até já tivesse ouvido um bocado do debate com o Cunhal que o pai gravara numa velha cassete audio da BASF que lá andava por casa. Mas isso eram tudo histórias. O que ele sabia mesmo é que ele era “fixe”, e que o ia ver. Por isso, quando o Rui Veloso deixou o palco nesse último comício de 1986 depois de cantar a música da campanha, pediu ao pai para lhe subir para os ombros, enquanto levantava a bandeira com a rosa e as cores de Portugal que levara com a mana.
Depois ele falou. Não se lembrava do que ele tinha dito, mas do que se lembrava era da palavra vitória. Do que se lembrava era da emoção. Mário Soares para ele era emoção. Que seria maior quando, dois dias mais tarde, depois de ir com os pais à escola ver como se votava, e quando, já noite, tinham chegado alguns amigos a casa para seguir os resultados das eleições, todos se abraçavam que o Soares tinha ganho ! Esperaram os discursos, primeiro o de Freitas, a seguir o dele. Saíram então à rua, provavelmente no Renault 5, para se juntarem à enorme caravana, como só voltou a ver quando Portugal foi campeão europeu.

Continuou sempre a ouvi-lo. E a aprender. Como adorou aqueles anos em que só ele acusava o que mais ninguém atrevia ao primeiro-ministro ceroso e hirto que nesses anos governava Portugal....
E continuou a lê-lo e a admirá-lo. Na coragem e energia que imprimia ao que dizia. Um dia até se encontrou com ele. Nos anos da Católica, com Sampaio presidente, uma conferência. Bebeu-lhe as palavras. Mas o que lhe interessava mesmo era falar-lhe um pouco e mostrar-lhe o livro que andava a ler: “O Futuro será o Socialismo Democrático” (1979).
«Esse livro é muito antigo.... », comentou Soares. «Mas actual !», não pôde deixar de lhe retorquir. Pegou nele com um sorriso e dedicou-lho “com um abraço do Mário Soares”.
Continuou a segui-lo, sempre que intervinha, ora ao vivo, numa “réplica” do debate com Álvaro Cunhal, ou enquanto candidato ao Parlamento Europeu, para, finalmente, poder votar nele. Como votaria depois quando se voltou a candidatar à Presidência da República. Quando se acredita é assim.

Agora, que já recebeu a notícia que todos esperávamos mas que não queria que chegasse, foi a casa dos pais. Na rádio acabava de escutar a declaração de Mário Soares após as cenas da Marinha Grande. Emocionou-se. A força toda ali !
O pai já estava na rua, preparando-se para comprar cravos. Deu-lhe um abraço. Não sabendo se o confortava, se procurava consolo. Sentiu-lhe um soluço.
A mãe, querida, entrevistada para o site do JN em frente aos Jerónimos. Comovida.
É, mãe, «todos os portugueses devem sentir gratidão por ele» e «devem sentir uma grande falta».

domingo, 8 de janeiro de 2017

"Mário Soares deixou-nos e deixou-nos tudo"


«Mário Soares não levou nada com ele. Deixou tudo connosco. É essa a maior generosidade que uma pessoa pode ter: querer tudo para os outros e dedicar a vida a lutar por isso — e por nós.
Mário Soares não se importava que não gostassem dele. Ia em frente, achassem o que achassem. É essa a coragem maravilhosa que deixou: serviu de exemplo da liberdade mais importante de todas, que é a liberdade de sermos como somos e acreditarmos no que acreditamos.
Até ao fim da vida, Mário Soares exerceu essa liberdade da maneira mais desobediente, imprevisível e desconcertante. Falava alto quando queríamos que se calasse. Quanto mais queríamos que se calasse, mais alto falava.
Mário Soares foi um rebelde e um inconveniente. Era um grande erro tratá-lo com condescendência ou passar-lhe a mão pelo pêlo. Ele reagia com arrogância não só à arrogância como aos excessos de humildade. Não era nenhum santo, graças a Deus. E nunca nos deixava esquecer isso.
No final de cada batalha — a grande maioria das quais perdeu descaradamennte — Mário Soares parava para dar lugar aos vencedores, saudando-os de igual para igual, como se também tivessem perdido.
Pouco importava na estima dele. Mário Soares era uma pessoa profundamente civilizada e humana. Revia-se nas fraquezas que todos herdamos mas poucos reconhecem. Era mimado mas recusava-se a mimar. Respeitava os outros não porque os outros tinham alguma coisa de especial — mas porque não tinham. Eram seres humanos, cidadãos, compatriotas. E isso chega. Isso deveria sempre chegar se todos nós tivéssemos a ideia generosa de democracia que Mário Soares tinha, pôs em prática e deixou para que nos habituássemos a ela e fôssemos, por nossa vez, libertados por ela.
Mário Soares deixou a pessoa dele nas gerações de camaradas e opositores que ele directa ou indirectamente inspirou. Podemos não reconhecer essa dívida — tanto faz. A liberdade de cada um de nós não cai nem cresce por causa do mal ou do bem que pensamos dela. É essa a única liberdade valiosa: a que não depende da nossa aceitação; a que é independente da nossa vontade de exercê-la ou reprimi-la.
Pode-se dizer mal de Mário Soares, o mal que se quiser. Não há nada que ele não tivesse ouvido em vida — e verdadeiramente tolerado, não com sobranceira indiferença, mas com o respeito democrático que vem dar ao mesmo. Encolher os ombros faz parte da liberdade. Foi Mário Soares que nos ensinou isso, tanto quando ergueu o punho como quando encolheu os ombros.
Mário Soares era o político que era uma pessoa. Recusou-se sempre a ser um salvador ou uma figura acima da multidão. Ele era o político que era de um partido — o Partido Socialista — e com muita honra. Ele era um laico convicto, capaz de dar tudo pela liberdade religiosa de todos aqueles que têm religiões diferentes da grande maioria. Ele era um republicano honrado que sabia falar com monárquicos, que os monárquicos respeitavam por ter sempre consciência de que tudo depende
sempre do que sente cada um de nós e que as nossas crenças, nunca sólidas ou imutáveis, são tão nossas como a nossa humanidade.
É essa semelhança no que nos distingue que nos dá razão para acreditar na humanidade e em ideais tão antigos e modernos como a liberdade, a fraternidade, a justiça e o progresso económico, social e político.
Mário Soares era um revolucionário burguês. Os burgueses criticaram-no por ser revolucionário e os revolucionários criticaram-no por ser burguês. Era por isso que ele é tão refrescantemente moderno: ainda não nos aproximámos do que ele queria para nós.
Ele deu-nos o desconto, compreendeu a nossa volubilidade e a nossa desconfiança. Compreendeu a nossa tendência ora messiânica, ora depressiva. Nunca se iludiu acerca de nós. Aceitou-nos como nós somos, recusando sempre os papéis providenciais que alguns de nós quiseramos impor-lhe, de pai ou de profeta.
Mário Soares foi sempre intransigentemente humano. Ou seja: transigiu em tudo. Negociou, esperou para ver, mudou de opinião. Foi um político inteligentíssimo que nunca teve paciência para se armar em superior. Sempre soubemos quem ele era e ao que vinha. Paradoxalmente, acabou por se prejudicar mais do que estava disposto a fazer. Foi pena não ter estado mais tempo no poder. Mas o preço disso — fingir ser quem não era, achar-se melhor do que nós — era caro de mais para ele. E ele fez bem em não pagá-lo, por muito jeito que tivesse dado a Portugal.
No dia em que morreu Mário Soares saúdo a liberdade que nos deixou, que está connosco agora, ao ponto de eu poder escrever estas linhas sem sentir o mais pequeno constrangimento ou ter de ceder à mais sensata obrigação.
Ele quis — deu a vida política por isso — que falássemos à vontade e que fôssemos tratados como cidadãos, com respeito pelas nossas opiniões e a força do Estado atrás do nosso direito de exprimi-las e lutar por elas.
Ganhávamos muito em aprender com ele — não tanto o que ele nos disse e ensinou, mas a maneira livre e vaidosa, civilizada, egoísta e profundamente humana como ele viveu.
Perdemos uma grande pessoa. Mas aquilo que nos deixou — que só temos de não desperdiçar — é muitíssimo maior. E essa é a grandeza que Mário Soares teve: deixar-nos tudo. Nunca mais haverá um Mário Soares. Mas nunca ninguém nos deixou uma grandeza maior.»

por Miguel Esteves Cardoso, 'Público'

sábado, 7 de janeiro de 2017

O Astrágalo



«Talvez seja errado falarmos de nós mesmos quando escrevemos sobre outrem, mas pergunto-me se na verdade me teria tornado no que sou, sem ela. Ter-me-ia continuado a comportar com o mesmo atrevimento ou enfrentado as adversidades com esta tenacidade feminina, se não tivesse Albertine como guia? Os poemas que escrevi quando era jovem teriam a mesma força mordaz sem ter tido Astragal como livro de cabeceira?
Descobri-a, de forma acidental, quando vagueava por Greenwich Village, em 1968. Era Dia de Todos os Santos, facto que mais tarde registei no meu diário. Estava com fome e a precisar de um café, mas primeiro passei pela Eight Street Bookshop para dar uma vista de olhos nas promoções. Havia colecções da Evergreen Review e traduções obscuras das editoras Olympia e Grove Press – novas escritas que a populaça evitava. Eu andava à procura de alguma coisa que tinha mesmo de ter: um livro que fosse mais do que um livro, com certos sinais que me pudessem levar por um caminho inesperado. Senti-me atraída por um rosto surpreendente e remoto – impresso em roxo sobre fundo preto – numa capa poeirenta proclamando que a sua autora era uma “Genet no feminino”. Custava 99 cêntimos, o preço de uma tosta de queijo e um café no Waverly diner, do outro lado da Sexta Avenida. Eu tinha um dólar e um bilhete de metro, mas depois de ler as primeiras linhas estava conquistada – uma fome derrotou a outra e eu comprei o livro. O livro era Astragal e o rosto da capa pertencia a Albertine Sarrazin. Ao voltar a Brooklyn de metro, devorando o exemplar já usado, fiquei apenas a saber que ela tinha nascido em Argel, era órfã, estivera a cumprir pena e escrevera dois livros na prisão e um em liberdade, e morrera pouco antes, em 1967, quase a fazer 30 anos. Encontrar e perder uma possível irmã quase ao mesmo tempo tocou-me profundamente.  Estava a aproximar-me dos 22 anos, longe de Robert Mapplethorpe. Previa-se que aquele ia ser um Inverno duro, já que tinha deixado o calor de certos braços pela incerteza de outros. O meu novo amor era um pintor que aparecia sem avisar, lia em voz alta passagens de Nossa Senhora das Flores de Genet, fazia amor comigo e depois desaparecia durante semanas. Essas foram noites de uma centena de sonos: nada acalmava a minha agitação. Estar presa no drama da espera – pela musa, por ele – era uma tormenta maliciosa. As minhas próprias palavras não bastavam; apenas as de outrem poderiam transformar a infelicidade em inspiração. Em Astragal encontrei essas palavras, escritas por uma rapariga oito anos mais velha do que eu, já morta.
(...)
Albertine, a pequena santa dos escritores independentes. Quão rapidamente fui arrastada para o seu mundo – pronta a escrevinhar pela noite fora, com canecas de café a ferver e a parar apenas o tempo de refazer o risco nos olhos com Maybelline. O seu jovem mantra foi aceite com todo o coração, o meu espírito maleável infundido.
(...)
Aos dez anos, foi violada por um membro da família do padrasto. Depois de tentar fugir, os pais mandaram-na para um reformatório de raparigas paradoxalmente chamado Bom Pastor. Era um sítio duro, onde ela era humilhada e onde lhe retiraram o seu nome de baptismo, Anne-Marie. Aos 13, tinha um caderno de lombada em espiral, um registo precioso das suas observações perspicazes; foi confiscado depois de o perfume de lírios-do-vale que usava ter sido considerado demasiado forte. Era pequenina e bonita, armada da vontade discernível de Joana D’Arc ao ser julgada, e fugiu do reformatório para as ruas de Paris para eventualmente levar uma vida de prostituta e pequena ladra. Aos 18 foi presa, com uma cúmplice, por roubo à mão armada e condenada a sete anos de cadeia. O seu último deslize valera-lhe quatro meses de prisão em 1963 por palmar uma garrafa de whiskey. Escrevia todo o tempo: durante a adolescência, no amor e no abandono, dentro e fora da prisão, escrevia.
A vida é muitas vezes o melhor filme. O dela terminou tristemente, num hospital, onde, fatigada, sorria para o seu amante, Julien, entregando depois o seu destino a um anestesista negligente. Que sonhos havia debaixo daquelas pálpebras cobertas de Maybelline enquanto estava a ser transportada – um futuro com Julien, paz e prosperidade, o reconhecimento? Todos eram possíveis, porque finalmente estavam ao virar da esquina. Eles tinham-se casado e despedido do crime. Deixou o mundo amada, mas, tal como quando nele entrou, numa nuvem de incúria.
Santa Albertine da caneta de usar e deitar fora e do perpétuo lápis de olhos. Vivi no seu ambiente. Imaginei o fumo azul do seu cigarro enrolando-se à volta das suas narinas, movendo-se pela sua corrente sanguínea e cavalgando a antecâmara do seu coração. Eu estava com demasiada bronquite para fumar, mas levava um pacote de Gauloises vertes no bolso da saia. Andava de um lado para o outro à espera que o meu pintor viesse e me salvasse do meu presídio auto-imposto, tal como ela tinha esperado por Julien. Nunca a espera foi tão suportável, nem o Nescafé um elixir tão bom. Criei o meu próprio jargão, iniciado com Astragal e completado com La Cavale, o seu romance seguinte, traduzido para inglês como The Runaway, com uma das grandes frases de abertura da literatura francesa: “Esta noite vesti-me a rigor para a minha entrada na prisão: casaco de peles e calças com vinco.”
(...)
Um dia visitarei a sua campa com um termo de café e vou sentar-me um bocado com ela e vaporizar perfume de lírios-do-vale na sua pedra tumular - em forma do osso astrágalo, que Julien colocou em sua memória. Minha Albertine, como a adorei! Os seus olhos luminosos guiaram-me na escuridão da minha juventude. Ela era a minha guia pelas noites de centenas de sonos. E agora ela é vossa.»

'Minha Albertine', por Patti Smith (introdução para a edição americana)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

80's Vice



e um abraço reconhecido ao velho amigo que foi hoje desenterrar estes parceiros da glória.
Vintage.

Happy New Vinyls




terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Now we're talkin'


Ou quando os Pais compreendem as necessidades do filho.