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Quão salutar e revigorante foi o contraste com a selecção
portuguesa. Eis um conjunto de jogadores com perfeita noção de que a qualidade
é um bem escasso e precioso, que deve ser tratado como um recurso finito do
planeta. Frugais e poupadinhos com os nossos consumos intermédios (boas ideias,
passes certos, remates enquadrados) fazemos apenas o estritamente necessário
para conseguir o resultado que desejamos, delegando parte substancial da tarefa
à inoperância adversária.
E assim aconteceu no jogo contra Marrocos. Ao minuto 4,
Cristiano Ronaldo colocou Portugal na condição que lhe pertence por direito:
a inexplicável vantagem no marcador. Daí para a frente foi uma
questão de aguardar que os marroquinos percebessem por si próprios - através do
método ancestral da tentativa e erro - que nenhum dos seus planos ia resultar,
e que a atitude correcta perante as circunstâncias era perderem não só o jogo,
mas a alegria de viver.
Uma lição de eficiência. Foi como se toda a empreitada dos
Descobrimentos tivesse sido preparada pelo Infante D. Henrique no promontório
de Sagres, numa cadeira de baloiço e com uma manta nos joelhos, a desafiar o
Atlântico num plácido murmúrio: "Ora então o Cabo das Tormentas que venha
cá meter-se com a gente, para vermos se é assim tão tormentoso. Eu aqui o
espero".
Esta capacidade recém-adquirida para defrontarmos uma sucessão
de equipas que se calhar mereciam ganhar-nos, mas se revelam incapazes de o
fazer, levou a comparações com a Itália, comparações que não iluminam o assunto
nem favorecem nenhuma das partes envolvidas. A Itália é historicamente exímia a
atrapalhar de forma deliberada a manobra ofensiva das outras pessoas. Portugal
é contemporaneamente exímio a estar no sítio certo enquanto, por mero acaso, as
outras pessoas se atrapalham sozinhas. (O catenaccio tornava
o jogo mais previsível e menos excêntrico; nós tornamos tudo incompreensível).
Cada estilo coerente, por ser uma maneira de observar o Mundo e
de responder ao que se observa, incorpora uma moral. Aqui estou, proclama o
estilo: é esta a maneira como o meu sucesso justifica a qualidade da vossa
alegria. O estilo actual da selecção portuguesa, por ser um anti-estilo, não
cede ao impulso artístico de olhar para dentro, e limita-se (com a veemência
dos predestinados) a apontar para fora. Observamos aquilo de que os outros são
capazes, e concluímos que são incapazes. Que não conseguem fazer aquilo que
querem, nem sequer têm a sorte necessária para que lhes aconteça o que querem
de forma acidental. Um bando de inúteis, no fundo. Pelo que a nossa felicidade
consiste em sabermos que, mais uma vez, nos desviámos dois passos para o lado,
dois segundos antes de levarmos com um piano nos cornos.
Tendo honrado, desta maneira brilhante, a memória de Figo, Rui
Costa, Futre, Chalana e Eusébio, tendo cumprido, em suma, o sonho de D.
Sebastião, resta-nos agora perguntar: mas afinal isto serve para quê? Será
possível ir ultrapassando todos os obstáculos desta maneira? Um Universo
racional permitirá que dois troféus consecutivos sejam conquistados assim?
É pouquíssimo provável, mas o tempo o dirá, e só se deve fazer
uma pergunta de cada vez. Antes disso, ainda temos mais esperanças para
aniquilar, mais inocências para destruir. Enquanto houver uma criança nas
bancadas, sorrindo na expectativa de um grande espectáculo, enquanto sobrar um
único circunspecto espectador neutral, convencido de que vai perceber alguma
coisa do que se passa dentro de campo, a nossa tarefa não está cumprida. No
que depender de nós, ninguém na Rússia se diverte, e ninguém aprende nada. Às
armas!
"Uma máquina para matar purismos", por Rogério Casanova, in DN
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