«God, mais conhecido por my God! nos seus templos
modernos (chamados estádios), existe, é anglo-saxão, humorista e inventou o
futebol. Este, aliás, é inglês até dizer chega - ou o leitor chama-lhe pedibol?
Vem de foot, não do português pé. E é justamente chamado football, ou futebol,
porque é desporto que nunca pode ser jogado com os pés.
Tanto é assim que o maior messias dessa convicção religiosa se chama
Messi e só tem pé esquerdo. O outro é cego e, por fanatismo, nunca toca na
bola. Football, de pé mais bola; não feetball, de pés mais bola. Ainda bem que
assim é, senão chamar-se-ia "fitebol" nas terras de Garrincha e de
Cristiano Ronaldo e "fítbol" na terra do já citado Messi. Fitebol
seria ciciado, pouco varonil e nunca chegaria ao êxito planetário a que estava
destinado.
Isto está tudo ligado desde que o Universo - então chamado Football
Association - foi criado em Londres na Freemason's Tavern, a 26 de outubro de
1863, uma segunda-feira. Desde aí, o futebol joga-se todos os dias da semana
(terças, quartas e quintas nas taças europeias, e fins de semana nos
campeonatos nacionais) e quase nunca à segunda que é o dia do my God! descansar
nos estádios.
A Freemason's Tavern era um lugar público que por ser maçónico tinha os
seus símbolos expostos: da letra "G", que é o sinal do Divino
Geómetra, ao olho dentro de um triângulo, que é a imagem do Olho da
Providência. Eis como uma fundação contemporânea do DN inicial, tão antiga, já
previa nos tempos vitorianos os dias de hoje: o "G" de então
representa hoje o símbolo do ritual mais louvado daquele culto: "Goooolo!!!"
E o olho que vê tudo anunciava o moderno VAR... Como é que em 1863 se adivinhou
tudo isso?
Como já eu disse, isto anda tudo ligado: a histórica taberna londrina
onde se criou o futebol foi, décadas antes, a sala onde a Sociedade
Antiescravatura britânica se reunia. A organização teve um papel fundamental na
abolição da escravatura mundial, isto é, foi dali que se criou um dos pilares
do mundo moderno.
Vejam esta sucessão de
passes mágicos: a Anti-Slavery Society indignava-se em 1823; no mesmo local, 40
anos depois, a Football Association fundava-se; na década de 1960, o mulato
Mário Coluna mostrava no relvado que o patrão de uma grande equipa europeia, o
Benfica, era ele; e, nesta semana, um branquelas apanha-bolas pôs uma bola na
bandeirola de canto, um mulato teve um rasgo de génio, fingiu que não fazia e
fez, e um negro marcou golo. Havia ainda um alemão paternal com cara de Alex
Ferguson e um egípcio em Ramadão que mostrava, no peito, a tática aos seus:
"Nunca desistas." Se isto não é o mundo que nós queremos, qual é ele?
Oh, o golo 4, na Liverpool do outro quarteto fabuloso!
Os fiéis puseram-se a rezar em uníssono como os apóstolos locais John, Paul,
George e Ringo, descreviam em Penny Lane a sua cidade natal. My God! Tão lindo.
Voltem a enumerar: um trabalhador braçal célere, um intelectual que pensa, um
artesão que executa, um patrão que comanda e uma vedeta que não podendo atuar
empurra os seus...
Quando as empresas (os países?) têm uma equipa que os galvaniza assim,
respondem. Eu sei que não tenho o saber do treinador Jürgen Klopp, nem o dote
de prestidigitação de Alexander-Arnold, nem a presteza do apanha-bolas Oakley
Cannonier - football são eles - mas sei que me sentiria em association, se
tivesse estado lá, nas bancadas do estádio Anfield. Com um sentimento de
pertença.
Não com o desconforto de assistir a pobres diabos que, tendo
sequestrado o futebol, por cá discutiam, nas televisões portuguesas, à hora
daquele milagre em Liverpool, as alegadas traficâncias de clubes para
chantagear árbitros e jogadores. Falavam de amantes de árbitros e de
futebolistas insultados por analfabetos que tiravam a camisola para mostrar
bíceps, os órgãos por onde raciocinam.
Comparem as duas imagens: o coro derreado de prazer em
Anfield, o tão bom de estar numa glória coletiva e limpa, agradecendo a quem a
construiu, os artistas; e, noutro estádio (com portistas, mas podia ser, e já
foi, de forma similar, com benfiquistas e sportinguistas), os guinchos de um autodenominado Macaco,
rodeado de seus iguais, a ousar pedir explicações a artistas. Com a técnica do
telecomando é possível assistir às duas cenas em simultâneo.
De Liverpool, a meus ouvidos e meus olhos, chegavam-me razões para
admiração. E, ao lado, à distância de um toque de telecomando, a vergonha de
estúdios televisivos nacionais (não, não só o reles) entretidos com ascos que
nos empequenam a alma. Em ambos os casos, aparentemente, o mesmo assunto:
futebol. Mas que identificação absurda!
Recorro a um tema simples, belo, amado por tantos, para alertar sobre
como podemos ser corrompidos por gente estúpida e má. Desta vez, não se trata
de calcular o impacto orçamental de uma medida política, nem de saber que tipo
de floresta devemos ter, desta vez não temos desculpa por nos enganarem. Falo
de uma coisa que foi inventada para nos dar prazer e nós amamos. E trata-se que
estamos a ser desapossados do futebol.»
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