quarta-feira, 29 de maio de 2013

"A cena de ódio a Mourinho", por Clara Ferreira Alves



«Não sei o que fez Mourinho ao Real Madrid. Nada justifica o ácido que os jornalistas espanhóis lançaram sobre a pessoa do treinador. Envelhecido, gasto, fracassado, banido, detestável, arruinado, arrumado, odioso, etc. Tanto rancor justificou uma peça na BBC, e o correspondente da estação confessava a surpresa da violência. Este género de ataque ad hominem tornou-se habitual não apenas no futebol, um terreno favorável aos humanos rancores. Também na política. É um ataque que se distancia do comportamento, decisão ou processo a noticiar, para analisar, para cair com força e apenas sobre a pessoa que vemos, os atributos físicos. O olhar, o jeito, o rosto, o penteado, o traje, a voz, a idade, tudo é motivo de ódio. Em Portugal, aconteceu no caso de José Sócrates, cujas decisões políticas eram logo transformadas em pecados dilatados por questões de "carácter" ou de física aparência. E aí, cresce a pilha de adjetivos. E acontece muito com mulheres em posições de poder, de que foi exemplo o ódio a Mrs. Thatcher na morte, um ódio altamente personalizado e maldoso. A bruxa, claro, foi um dos insultos mais usados, como no tempo de Salem. O antissemitismo e a caça às bruxas nunca desfalecem. Na era da internet, o solo primordial de ressentimentos e vinganças por justiceiros e psicólogos de trazer por casa, que visam repor a "verdadeira cara" de personagens que desconhecem através do exercício do comentário sulfúrico, a linguagem do ódio tornou-se moeda corrente. Ao contrário da ironia, que solicita a inteligência e o humor, o ódio é fácil de digerir, repetir, e apela ao baixo denominador comum, que satisfaz o ressentimento no anonimato. Satisfaz o racista incipiente, o ditador inconsequente, o burocrata infeliz, o cabotino invisível. O inferno são sempre os outros.

Enquanto estamos consumidos pelo ódio simplificado a pessoas, as corporações vão destruindo vidas, vão perpetrando crimes e fugas, vão passando ilesas no crivo da censura social. Odiar Mourinho é fácil, odiar a Apple é impossível. A Apple trata-nos como clientes, consumidores, amigos. A Apple acaba de ser apanhada em fuga aos impostos. E não é um pequeno delito. Através de um esquema complexo mas legal de empresas que vão desaguar noutras empresas, de sociedades que vão desaguar noutras sociedades, de labirintos de subsidiárias virtuais com sedes fiscais espalhadas pelo mundo, a Apple vai responder ao Congresso e à lei americana por quase 80 mil milhões de dólares de impostos em falta. Quase o montante do resgate de Portugal. A Apple vale mais, economicamente, do que um país. A Apple tinha um sistema tão inteligentemente concebido que até o fisco americano, o mais bem oleado do mundo, o mais difícil de iludir, foi iludido. A Apple não tem de ter, ao contrário de Mark Zuckerberg e de Bill Gates, consciência social. E Steve Jobs nunca deu um tostão ao próximo, nem praticou a filantropia. Deixou no porto de Amesterdão um superiate, desenhado por Philippe Starck, que foi apreendido no processo de herança por causa de uma dívida ao designer de vários milhões de dólares. O barco, começado a construir quando Jobs já estava muito doente, foi o derradeiro egoísmo. Na morte, Jobs foi celebrado como um deus, construindo-se uma nova teologia. E um culto da personalidade como não se via desde o falecido Mao. Como clientes desta corporação, nem sequer como acionistas visto as ações da Apple estarem tão valorizadas que só os ricos as podem comprar, comportamo-nos sem pensamento crítico. Em Portugal, um país empobrecido, a venda de smartphones aumentou 46%. Muitos serão da Apple.

A Apple, como a Starbucks, como a Amazon, praticam esquemas internacionais de fuga fiscal que faz com que escapem a todas as leis de todos os países e celebrem com as autoridades políticas e fiscais pactos específicos que os impedem de ser devidamente taxados. Na Europa, a Irlanda é o paraíso fiscal da Apple. A Irlanda, perpetuamente apontada como um exemplo da eficaz austeridade, autoriza acordos fiscais com multinacionais que transformam o país num verdadeiro offshore dentro da União Europeia. Estes pactos fiscais não produzem riqueza nem criam muito emprego, servem de quadro referencial de sucesso do investimento estrangeiro. Bruxelas poderia e deveria acabar com este estado de coisas, legislando e aplicando regras unitárias. Preferiu dedicar-se ao tamanho dos pepinos, à fermentação de queijos não pasteurizados e às garrafas de azeite das mesas dos restaurantes. Os regulamentos europeus são isto. E nós, legiões de consumidores, legiões de cidadãos informados e informatizados, preferimos dedicar-nos aos Mourinhos como atentados à nossa consciência, deixando escapar os feitores e malfeitores do capitalismo transnacional. O ódio é a felicidade dos brutos.

'Expresso', 25 de Maio de 2013

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