domingo, 12 de fevereiro de 2017

La pelota no se mancha


«Se dependesse dos argentinos, tínhamos de entrar em campo com uma metralhadora cada um e matar Shilton, Stevens, Butcher, Fenwick, Sansom, Steven, Hodge, Reid, Hoddle, Beardsley, Lineker. Mas nós até nos tentámos alhear de tudo isso. Eles eram, simplesmente, os nossos adversários. O que eu queria, apenas, era fazer-lhes umas chapeladas, meter-lhes umas cuecas, fintá-los, marcar-lhes um golo com a mão e mais outro, o segundo, que fosse o maior golo da história.
Lembro-me bem. Quando os jornalistas se inteiraram de que íamos jogar contra a Inglaterra nos quartos-de-final nós até evitámos falar, porque sabíamos bem quais iriam ser as perguntas: como íamos gritar os golos que lhes marcássemos, se íamos fazer fuck you à Thatcher, se íamos dar um murro ao Shilton. Sabíamos o que aí vinha, por isso decidimos manter-nos serenos e alheados disso. Em todo o caso, por dentro, era uma questão que mexia connosco. Asseguro-vos que, por dentro, eu estava a arder. Explodia-me o coração e era preciso jogar com ele.
Na nossa preparação para o jogo, porém, o tema da guerra não passou desapercebido. Nem podia passar ! A verdade é que os ingleses nos tinham morto muitos rapazes, ainda que se os ingleses tiveram culpa, culpa tiveram também os argentinos que mandaram os nossos rapazes enfrentar a terceira potência mundial em sapatilhas de pano.
(...)
Desse golo com a mão não me arrependo, de todo. Não me arrependo! Com todo o respeito que me merecem os adeptos, os jogadores, os dirigentes, não me arrependo nem um bocadinho. Porque eu cresci com isso, porque em Fiorito eu fazia isso permanentemente. E acabei por fazer o mesmo diante de 100 mil pessoas que nem se aperceberam... Porque toda a gente ficou a gritar golo. E, se gritaram, é porque não tinham qualquer dúvida. Por isso, como podemos atribuir a culpa ao coitado do tunisino?
Ganhei um processo a um diário inglês que, mais tarde, escreveu num título "Maradona, o arrependido", coisa que jamais me passou pela cabeça. Nem aí, imediatamente, nem passados 30 anos... Nem até ao meu último suspiro, antes de morrer. Como respondi a um jornalista inglês, da BBC, um ano depois: "Foi um golo totalmente legítimo, porque o árbitro validou-o. E quem sou eu para duvidar da honestidade do árbitro, certo?" O mesmo disse a Lineker, quando ele esteve em minha casa, em Buenos Aires, para me fazer uma entrevista , também para um canal inglês.
(...)
Voltou a perguntar-me se não me sentia mesmo mal por ter marcado aquele golo com a mão e eu disse-lhe que era um jogo, que se o árbitro não tinha percebido, isso era parte do jogo. E Lineker conformou-se, não disse absolutamente mais nada. Ou disse: "São coisas do futebol." Enorme, o Lineker. Acabamos sempre a falar assim quando nos vemos.
Shilton, esse sim, ficou e vai ficar para sempre com raiva de mim. Disse: "Não vou convidar Maradona para o meu jogo de despedida." Também, quem é que quer ir ao jogo de despedida de um guarda-redes ? E de Shilton ?!
(...)
Para mim, foi como roubar um ladrão: acredito que tenho cem anos de perdão. Na conferência de imprensa, não sabia como sair daquela enrascada. (...) E a alguém respondi, de passagem, que tinha sido com "a cabeça de Maradona e com a mão de Deus". Disse-o a pensar em todos os rapazes que tinham morrido, em todos eles - e aí sim, sensibilizei-me. Disse que tinha sido "a mão de Deus" que me tinha ajudado a fazer aquele golo. Não que eu acreditasse ser Deus, nem que a minha mão fosse a mão de Deus: acreditava, simplesmente, que tinha sido Deus, com a sua mão, a pensar em todos os rapazes cujas vidas foram destruídas nas Malvinas, a fazer aquele golo. E é isso que sinto ainda hoje, 30 anos depois.
(...) Messi pode ser maior do que eu. Pode ser, ou pode não ser. Agora, eu marquei dois golos à Inglaterra que valeram pelos rapazes caídos nas Malvinas e pelos familiares dos rapazes caídos nas Malvinas. Dei-lhes um consolo, e isso mais ninguém vai poder fazer. Mais ninguém ! Porque não vai haver outra guerra, porque não pode haver outra guerra, porque isso queria dizer que tínhamos voltado a ter um Galtieri e ninguém quer um Galtieri de volta.»

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