sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Atravessando


Para ele a Travessa era o Rio. O 572 da Visconde de Pirajá, quando se vai da Vieira Souto e se atravessa Ipanema para desaguar na Rodrigo de Freitas com chinelo no pé. Era aquele chão de cozinha em ladrilho velho aos quadrados verdes e brancos e os livros que arrebatámos com a velocidade de cinco minutos porque estava fechando. Era o português do outro lado e as letras com sotaque a bossa e alegria. Cheirava a suco de tangerina e açaí e sabia a água de coco que a gente chupa pra matar o calor de Novembro e a humidade que se cola aos corpos melados de açúcar. Era o Globo na mesa do pequeno-almoço e era olhar para as ruas de árvores gordas e muito verdes, e sentir o ar denso e doce pesando nos ombros, que sacudimos quando mergulhamos de asa delta na praia de São Conrado, mal acreditando que estamos a voar e que vemos o Dois Irmãos bem de cima, como se fosse nosso, e tudo o que ele tem à volta até ao Vidigal. Mas primeiro uma moqueca no Jobi ou um chopinho no Bar do Gomes já que subimos à Santa Teresa. É... o rock do Amarante, do Camelo e dos Hermanos no meio da maluqueira de uma chuvada descarregada a trópicos na marina da Glória ali bem perto do aterro do Flamengo, e ter amigos irmãos, que não nos deixam perder o concerto do dia seguinte só porque tínhamos querido jantar no Botafogo. Era isso tudo. As ruas chiques do Leblon, os prédios velhos e os arcos da Lapa, e mais um pastelinho num boteco da Urca, antes de apanhar o barco para Niterói pra ver o disco voador. E o teatro municipal e a igreja da Candelária, ou a Casa Villarino "onde tudo começou". O deixa andar no Quase 9 e os brancos, negros e mulatos que se divertem nas praias jogando à bola e praticando futevolei. Era o fimzinho no Arpoador, mas antes devolver o livro do João Gilberto ao Carlos Alberto, "objecto pessoal, cara". Era o Rio todo, até os calções de banho comprados na loja da Maria Quitéria, às cores. O Rio eram cores.




Mas agora. 
Agora era também o Príncipe Real. A rua da Escola Politécnica, aquela de que gostamos tanto. E como tudo o que é bom e é inesperado, foi perceber que ela tinha aberto as portas na véspera e então entrámos e começámos logo a falar com o "Vascainho" que nos atendeu enquanto ainda arrumavam os livros chegados do Brasil, desculpando-se por muitos não terem preço marcado. E então trazer logo uma data deles porque não dá para entrar e sair sem ao menos um Conceição Evaristo. E depois voltar. Uma, duas, muitas vezes. Para regressar ao Rio.

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