terça-feira, 20 de agosto de 2019

coisa de amigo *

«N'golo era a palavra congolesa para força, força vital. Também se aplicava a ego, posição social, força ou líbido. Era indiscutível que Ali se sentia desapossado da parcela a que tinha direito. Nos últimos dez anos, a imprensa tinha vindo a roubar-lhe n'golo. Não lhe importava se tinha tanto como qualquer outra pessoa na América, queria mais. Não é o n'golo que temos, mas sim o n'golo que nos é negado, que provoca as mais violentas histerias da alma. Por isso Ali não podia querer perder aquele combate. Se o perdesse, os jornalistas escreveriam os epitáfios da sua carreira, e os mortos não têm n'golo. Os mortos estão a morrer de sede, reza um velho ditado africano. Os mortos não podem desfrutar do n'golo que chega com o primeiro gole de vinho de palma, de uísque ou de cerveja.
(...)
Assim começou o terceiro ato do combate. Não era muitas vezes que se via um final de segundo ato melhor do que a tentativa falhada de Foreman de destruir Ali nas cordas. Mas as últimas cenas levantariam um problema. Como iria terminar a peça? Porque, se Foreman estava exausto, Ali estava desgastado. Tinha batido em Foreman com mais força do que em qualquer outro adversário. Tinha-lhe batido muitas vezes. A cabeça de Foreman devia estar como um pedaço de borracha vulcanizada. Até era possível que nada mais acontecesse mesmo que continuassem a bater-lhe durante toda a noite. Há um limiar para o KO. Quando esse limiar não é ultrapassado, ainda que se esteja perto, um homem pode cambalear indefinidamente pelo ringue. Foreman recebeu a sua terrível mensagem e continua de pé. Aplicar-lhe uma dose maior do mesmo sofrimento não o destrói. É como a vítima de um casamento catastrófico a que ninguém sabe como pôr termo. Por isso Ali tinha de inventar uma surpresa. Caso contrário, enfrentaria a mais infeliz das ameaças, que era os dois, ele e Foreman, passarem os restantes combates aos tropeções. A estética do boxe é muito difícil de explicar, ainda que superficialmente. Para um artista como Ali seria um desperdício insuportável perder a perfeição deste combate arrastando-se durante trinta monótonos minutos até uma desconsoladora decisão unânime.
Um belo desfecho do combate ficaria como uma lenda, ao passo que uma vitória sem brilho, conseguida num anticlímax, faria dele uma lenda pela metade - com uma reputação exagerada pelos amigos e contestada pelos inimigos - exatamente o estado que atormentava a maioria dos heróis. Ali estava a combater com outros objetivos. Pelo menos, assim dizia. Por isso tinha de despachar Foreman em poucos assaltos e fazê-lo bem, um problema gigantesco. Era como um toureiro que no fim de uma excelente faena ainda tem de enfrentar a possibilidade preocupante de uma estocada final morosa e dececionante. Como não existe prazer maior para um atleta do que superar o estilo do seu adversário, Ali iria tentar roubar a Foreman o seu último motivo de orgulho. George era um carrasco. Ali seria um carrasco melhor. Mas como se pode executar um carrasco?
(...)
A vinte segundos do final do assalto, Ali atacou. Pelos seus cálculos, pelos cálculos aperfeiçoados em vinte anos de pugilismo, com o saber acumulado de tudo o que podia ou não fazer a cada momento no ringue, escolheu aquele momento e, encostado às cordas, atingiu Foreman com uma direita e uma esquerda e saiu das cordas para o atingir com uma esquerda e uma direita. Nesta última direia voltou a aplicar a luva e o antebraço, num soco fragoroso que projetou Foreman para cima das cordas. Quando ele ia a passar, Ali atingiu-o lateralmente com um golpe de direita na maxilar e afastou-se rapidamente das cordas para que fosse Foreman a ficar perto delas. Pela primeira vez em todo o combate, tinha cortado espaço ao adversário. Então descarregou sobre ele uma combinação de de socos, rápidos como os do primeiro assalto, mas mais fortes e mais consecutivos, três direitas demolidoras seguidas e depois uma esquerda, e por um momento perpassou pela expressão facial de Foreman a noção de que estava em perigo e tinha de procurar a última proteção que lhe restava. Estava a ser atacado, e não havia cordas atrás do seu adversário. Que coisa estranha: os eixos da sua existência tinham-se invertido! Agora era ele quem estava encostado às cordas! Foi então que um grande projétil com a medida exata de uma luva de boxe acertou em cheio na mente de Foreman, o melhor soco daquela noite desconcertante, o golpe que Ali guardou durante toda a carreira. Os braços de Foreman afastaram-se do corpo como os de um homem que salta de um avião em paraquedas, e nessa posição dobrada tentou regressar ao centro do ringue. Entretanto mantinha o olhar fixo em Ali, sem ódio, como se Ali fosse de facto o homem que melhor conhecia no mundo e aquele que estaria presente no dia da sua morte. A vertigem apoderou-se de George Foreman e revolveu-o por dentro. Ainda dobrado pela cintura naquela posição de incredulidade, sempre de olhos postos em Ali, começou a cambalear e a tropeçar e a cair, apesar de não querer ir ao tapete. A sua mente segurava-o com um íman alto como o seu título de campeão, mas o seu corpo procurava o chão. Soçobrou como um mordomo de um metro e oitenta de altura e sessenta anos de idade que acaba de receber uma notícia terrível, sim, caiu para a frente durante dois longos segundos, o campeão desmoronou-se por etapas e Ali andou à sua volta num círculo fechado, punho pronto a bater-lhe mais uma vez, mas não foi preciso, limitou-se a fazer-lhe uma escolta íntima ao tapete.»


* como se não bastasse a maionese de garoupa no Tia Matilde de sempre.

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