terça-feira, 7 de junho de 2011

A música do Avô - I

Há coisas que se herdam ainda antes de sabermos quem somos, antes de olharmos para nós. Que vêm no sangue como um código de barras. Que dizem "tu és nosso." E nós somos.
Tu, Avô de Lisboa que eras do Porto e morreste há 14 anos. A quem nunca falei por tu.
Só agora, um ano depois de te seguir a mulher que te adorou, se começou a desmanchar o Lego da casa que já não é vossa, e reclama herança e partilhas.

Tinhas uma Biblioteca. E não era só de livros.
Uma fabulosa e impressionante colecção de discos de vinil enchia estantes e estantes da casa da Defensores de Chaves. Local sagrado. Quase puro, não fosse proibido. 
Como eu era miúdo, todas as tentações de ali entrar deviam morrer assim. Mandavam.
Todos os filhos e netos respeitavam essa ditosa lei, mas o meu atrevimento de nunca aceitar o não de uma vedação sem espreitar primeiro, punha-me a entrar às escondidas naquela sala.
Transido de medo. Da voz que mandava. De uma voz qualquer desde que fosse adulto. Do puxão de orelhas que as dobrava. E doía como nada. Pior. Da vergonha do ralhete. Do crime imputado em família.
Era inútil. Não conseguia resistir. Olhava maravilhado e absorto para o que escondiam aquelas proibidas prateleiras. Por miseráveis e desesperados segundos.
E como a tentação me corroía, não evitava tirar um ou outro disco para fora, e um ou outro livro. Só para os morder.
Com a consciência a grelhar-me o cérebro, punha-os logo no sítio (acho) e pisgava-me com o shot de adrenalina e o coração bombado para fora do peito.
Acho que nunca enganei ninguém.

Quando se começou a mexer nas tuas coisas, foi preciso saber o que fazer aos milhares de livros e discos que a vida das estantes carregava. Fez-se uma selecção, por áreas, estilos e autores.
E fomos descobrindo diamantes. Raridades, impecáveis, sem riscos ou nódoas. Sem pó.
Como este disco que me parou nas mãos: "The Jimi Hendrix Concerts".
Se alguém pode ser aquilo que faz, Avô Professor, Advogado, Juiz e Conservador, tu foste o Avô sábio e conversador do "10 a Comunitário ?? Deixa lá que quando trabalhares nunca ninguém te vai perguntar quanto tiraste nessa Cadeira." E é o que foste.


Ao vivo em Winterland, no Royal Albert Hall, em Nova Iorque, Berkeley e San Diego. Inclui versões de "Fire," "Voodoo Chile", "Hey Joe", e um estonteante solo que cobre o ar que respira quem escuta o "Little Wing".
A música. Esteve sempre lá. E cá.

1 comentário:

Are You talkin' to Me ?