segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Goodfellas



O clã foi reunido. 
Não é todos os dias que nos chamam para cortarmos as goelas a umas bichas.
Fazer parte de um gangue de wiseguys dispostos a tudo por um prato de Lampreia requer um pacto de sangue. Com arroz malandrinho.
É claro que conhecia a lenda de raridade em extinção. Cresci numa família que me contava que só de vez em quando a conseguiam apanhar. Uma vez por ano talvez, e durante o segundo mês do calendário. Que ou se ama, ou se odeia. Que há quem tenha pesadelos com esta cobra do rio, que não admitem ver se não for 25 de Dezembro e estiver coberta de fios de ovos.
Mas foi feita a chamada para o ritual. Também já era tempo de perder a minha virgindade e experimentar o sabor quente e avinagrado do peixe negro e esguio, que faz susto quando abre a boca e mostra a língua raspadora. 
A adrenalina mal me deixou dormir. Cheguei 10 minutos antes da hora marcada ao 'Marquês de Palma'. Ocupei o meu lugar numa mesa previamente reservada. Koba, o big boss, tinha feito o telefonema.
Depois de me sentar, fui logo abordado pelo Sr. António. «Os outros vêm ?», perguntou, olhando-me de lado, enquanto limpava as mãos num pano branco da cozinha. Respondi-lhe que não era costume estarem atrasados, tentando em vão disfarçar o nervosismo com uma fina fatia de presunto que enfiei na boca.
«Vamos lá ver se não falham. É que tivemos que ir hoje à lota e pelo meio ainda tivemos que "despachar" uns gajos da ASAE. Andam doidos para ver se encontram os culpados. Isto vai custar-vos caro.»
Já não parava de olhar para o relógio. Tinha trazido a arma comigo e certificava-me que ninguém se aproximava do Chefe.
Foram chegando. Cada um à vez. Primeiro o Milo "crazy tits". De cabelo bem aparado, quis logo saber se eu estava com medo. Depois o Tommy  "alheira". Sentou-se e não disse nada. Limitou-se a afiar a faca que trazia no casaco. Finalmente, Koba "the bad lizard", de barba ligeiramente por fazer, mandou o tacho vir para a mesa. 
Eram horas. Perguntei-lhes se teríamos sempre o prato quente. «Sim. É sinal que foram lavados depois da última.... bem, tu sabes.»
Não havia mais nada a fazer ou comentar. Tinham-se metido com eles e agora era preciso dar uma resposta à altura. Passaram-me a faca para mão e com um golpe certeiro, que tinha treinado semanas a fio num frango de cabidela, enfiei-a bem no peito da safada. 
Pelo jeito com que todos me olharam a seguir, acho que não fiz má figura.Tinha enfrentado o teste derradeiro.
Levantaram-se, serviram-me uma malga de 'Aliança' e bebemos. Fora admitido.
Deliciei-me, é um facto. Até repeti. Não há mal nenhum em gostar do que se faz, pensei.
A siricaia e a aguardente final serviram apenas para acabar o serviço. E mais um whiskey no bar do Tony logo em frente. Estava com problemas com uma cliente de meia idade que não queria largar a novela. E ele queria fechar a televisão.
Mas o principal tinha conseguido. Percebi-o quando o Sr. António se despediu de mim com uma palmadinha na cara e "dê cumprimentos ao seu paizinho!" 
Passava a pertencer à famiglia e já me podiam tratar na rua por Senhor.
Não é só um orgulho. É uma responsabilidade.
O problema destas coisas é que não há volta atrás. Uma vez provado o gosto do sangue, ficamos agarrados. A próxima agora tem de ser à bordalesa.

2 comentários:

  1. Bem esgalhado!
    Até hoje nunca provei. Mas confesso que fiquei com vontade.
    Até parece ouvir-se o som esvaído e o estertor da bicha ao meteres-lhe a faca nas tripas.
    Parece que a pescada em Melgaço é superior, pois vão perdendo a gordura ao subir o rio Minho. Uma que, em Caminha, pese 1,500 Kg, chega, ao entrar no tacho em Melgaço, apenas com 1,200 Kg.
    E ouvi dizer que comida seca e fumada com presunto, é um petisco.
    Mas isso só depois de uma boa tachada à bordalesa, acompanhada de pão torrado.
    Havemos de ir a Melgaço! - Vulpes

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