sexta-feira, 3 de junho de 2016

Duelos ao Sol


O calor tropical que assentava sobre a cidade recomendava uma esplanada, pedia a frescura de um gin tónico ou uma geladinha. E embora por toda a cidade já se vissem as fitinhas e balões dos Santos populares, aqueles dois rapazes quiseram esquecer que isto era Lisboa para experimentar jogar sob o céu de Maputo.
O calor tropical implorava uma esplanada, chorava uma bebida, mas aqueles dois quiseram provar o court central do Lisbon Racket Centre, às 13 horas da tarde.
Não era a primeira vez que jogavam, e não vai com certeza ser a última, mas aqueles dois tinhosos agora juraram suar todos os litrinhos do corpo ao ritmo de pancadas de bola.
Se o primeiro set já tinha sido renhido, com as bolas a caírem um pouco mais para o lado de Raspa, pintando o quadro a 6-4, o segundo foi pior. E o céu com aquela estranha orla feita de nuvens, bafo e humidade.
Raspa bem explica ao seu amigo Tommy "Alheira" que quando joga ténis, não joga para ganhar (embora não pense noutra coisa ao longo do jogo), nem joga por prazer (se a vida fosse só prazer estava agora a chupar uma caipirinha ou um Daikiri). Não, Raspa joga ténis para resolver o problema que tem à frente. E que problema ? Tommy "Alheira" é da velha massa dos transmontanos, de Vila Real, habituado a calores infernais e a frios inclementes, e a dizerem-lhe que não. É o estilo de jogador que dá sempre mais um passo se isso lhe garantir chegar à bola antes. E ai de quem lhe prometa uma abébia. Capaz de lhe mandar com a raquete à tola.
O "Alheira" não é glacial, não é frio e imperturbável. Mas, caramba !, morde os dentes numa pedra e corre para chegar a todas. E é por isso que Raspa sabe, quando vê que a bola fez o ponto, que do outro lado foi feito tudo o que podia e não observa um preguiçoso habituado ao mimo da mãe. Podia facilmente sobreviver com ele em qualquer exército.
Desse outro lado, a vida é dureza, o que implica ir ao Dubai num avião e estar lá dia e meio para fechar uma obra ou, pior !, ir só em prospecção.
Desse lado, a vida não é fácil e por isso hás-de correr mais do que eu e suar mais do que eu, e servir, cruzar, bater melhor do que eu. Só assim podes merecer o almoço que vem a seguir.
E, por isso, a gente serve e cruza e bate, e tenta tudo para resolver o problema que está à nossa frente. E que, para cúmulo, ainda é canhoto !

Jogo ténis como se estivesse a fazer um puzzle, peça para um lado, peça para o outro, tentando encaixar o ponto da vitória. Se não dá, volto a tentar. Mais uma peça, mais outra, chamo-o à rede e saco o balão. Mas o sacana corre e consegue voltar atrás e apanhar a bola que já ia. Então faço um amorti, para o partir todo. O pior é se não dá, porque depois levo eu com a resposta, em jeito de chapada, só para não me armar em parvo.
O segundo set continuou como o primeiro. 1-0 para o meu lado, 2-0, mas logo vira e está 2-1 e 2-2. Percebo a chamada e faço o 3-2. Mas o "Alheira" empata depois de uma furiosa troca de bolas que teria feito levantar o público da galeria, se  este não tivesse só os olhos na salada que tem no prato.
Lembro-me «de querer arrancar / algum roçado da cinza», os versos de João Cabral de Melo Neto, no "Morte e Vida Severina" e inspiro-me. Meto o 4-3 e o 5-3. Olho para o céu. A orla continua lá. Que calor, meu Deus !
Nesta altura começo a pensar que a água que vou bebendo evapora antes de chegar ao estômago. E como tenho o serviço a meu favor só preciso de mais um esforço para o 6-3 e acabar de vez com o suplício. Quem não concorda é o "Alheira", pois está claro. Com dois passing-shots bem metidos desmoraliza-me logo. Mas respiro fundo e empato 30-30. O "Alheira" tem o demónio dentro do corpo, ou melhor, aquilo não é um, são todos os demónios do entrudo transmontano. E vence, reduzindo para 5-4.
Troca de campo e lá vou outra vez para o lado do sol que cega a vista. O que vale é que é ele a servir. Tudo a meu favor, pancrácio ! Mais um bocado e já vais tomar o banho gelado. Qual quê ?! Wrong again. Aguenta-te mas é outra vez, porque o "Alheira" já recuperou e empatou o jogo 5-5.
Sim, mas nem tudo está perdido. Finco os dentes numa pedra e 6-5 para o pôr na ordem. Só que o sacana do transmontano prometeu que hoje era até ao fim e mete as bolas todas no sítio que elas queriam, para fazer o 6-6. Tie break ?!? Motherfucker !
Compreendo então que só me resta sofrer, sofrer e sofrer, como diz o mano. E que na vida - como sempre tenho aprendido - só o trabalho vence. Por isso, trabalha rapaz. Trabalha se queres almoçar.
Agora estamos no último capítulo do 'Aconteceu no Oeste'. Só não sei se sou o Charles Bronson ou o Henry Fonda. É bom que seja o primeiro.
Começa melhor o "Alheira", mas o primeiro ponto foi apenas o epílogo do que chegaria em 15 minutos. E embora o braço já doa como se tivesse estado a pegar numa espada da Idade Média, começo a sacar cruzadas como se fossem imperiais e rapidamente chego aos 7-2 com que acaba o encontro. Posso finalmente ir descansar. Mas vou é trabalhar.

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