quinta-feira, 8 de junho de 2023

isto não é um livro de memórias

 



«Bem, escrever canções é assustador. Não é propriamente como andar a saltitar pelos campos, todo contente a colher canções e a guardá-las numa cesta. É um ofício sangrento, especialmente ao início. Começas a partir de um lugar de privação, do nada, de uma absoluta ausência de tudo. E é então que és confrontado com a tua própria pessoa menos as tuas ideias, aquelas coisas que normalmente te isolam de toda a merda negativa que guardas entranhada acerca de ti mesmo e das tuas capacidades, e que vive dentro de ti como uma maldição.»

(...)

«Pela minha experiência, andar na estrada exige uma certa dose de bluff e de bravata. Esta bravata não é pose: é um mecanismo de sobrevivência. Não te queixas. Não te lamentas. Vais aguentando como podes. Isto porque andar em digressão é, de facto, uma coisa difícil de fazer. Tenho a consciência que não é como trabalhar nas minas de carvão, claro, mas também tem as suas dificuldades. Sobes meio atordoado para o autocarro que te irá levar à próxima cidade numa viagem de oito horas, e são 7:30 da manhã, só dormiste três horas e ainda estás todo fodido por causa dos comprimidos para dormir que tiveste de tomar, isto porque, quando estás em digressão, nunca vais simplesmente para a cama e adormeces - tens de te pôr inconsciente. E então ficas com um aspecto de merda e sem voz, e os teus joelhos estão todos esfolados e com feridas abertas por caíres de joelhos, e fodeste as costas, e estás com uma infeção urinária, e a comida mexicana da noite anterior ainda te anda às voltas no estômago, achas que estás a ficar engripado, e entretanto o hotel perdeu roupa que deixaste na lavandaria, e odeias a merda do mundo inteiro, e olhas para o Warren e ele diz "Como estás ?", e então esmurras o ar e dizes "Espetacular, meu!", porque sabes que ele está precisamente no mesmo estado que tu. E então sentas-te e o autocarro arranca, e o Warren diz, porque é dez anos mais novo e incuravelmente fascinado pelo mundo, e porque já bebeu dezasseis cafés: "Foda-se, ontem à noite vi um documentário sobre a Nova Vaga do cinema iraniano. Simplesmente fantástico. Já o viste ?" E tu respondes que não, e então lá se vai o Warren. O que estou a tentar dizer é que, no meio disto tudo, não vais querer lançar-te numa actividade em paralelo que te fará sentir cada vez mais pequeno, vazio, insignficante ou um fracasso, ou que te afunda num lugar escuro do qual vais ter de trepar a custo para sair, ou que te faz chorar, ou que te leva ao desespero. A escrita de canções faz isso. A escrita de canções seria essencialmente a última gota. É simplesmente demasiado difícil. Por isso, em vez disso escreves um livro, ou um guião, ou um poema épico, ou desenhas uma t-shirt, algo do género.»

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