(Roy Lichenstein)
No outro lado do balcão da livraria: a voz.
Estava já na caixa e preparava-se para pagar o livro, mas abandonou tudo no momento em que escutou aquela voz. Nasal e rouca. Curtida um pouco mais pelo tabaco. Levantou o queixo e olhou demoradamente, como se tivesse despertado de um sono longo. Com o cuidado com que se tratam os sonâmbulos. E observou o dono da voz. A dona. Comentava qualquer coisa com a funcionária da livraria. Tinha passado para o outro lado do balcão onde já reunira uma pilha de livros que ia levar com ela. Seria possível ? O cabelo todo branco agora. Puxado bem atrás e apanhado num rabo de cavalo volumoso. Os óculos tombando no nariz, talvez com mais graduação. Que a encolhiam no tamanho. Ou era ele que se sentia mais alto. Tinham passado 23 anos.
Do 10º ao 12º ano tive o professor mais difícil que se pode ter. A Professora.
Ainda a revolução estava no princípio - a do 9º ano, dos Nirvana, contra os professores e contra a escola, ou contra quem mandava em geral -, e tinha agora pela frente uma professora nova. Uma disciplina nova. Filosofia. A curiosidade mandava pôr tudo on hold.
Alguém espalhou nos corredores que era uma professora universitária (o que só por si impunha respeito) que agora tinha vindo dar aulas ao Secundário.
Fama já tinha. Mistério também.
Mal a encarámos na aula nº 1, e levámos logo com um enunciado na cara: 2 + 2 = 4. E uma série de linhas em branco. Agora dissertem sobre isto.
Pela primeira vez na minha vida escolar recebi um shot de adrenalina diferente dos outros. Este não era por me porem à prova. Uma adrenalina virgem. Percebi mais tarde que era a liberdade a mergulhar em êxtase. Podia pensar e dizer tudo o que eu quisesse. Aprender a pensar e a dizer. Em livre. Foi aí que tive a certeza de que não podia haver respostas erradas e que não havia castigo ou nota baixa. Só precisava de deixar a caneta falar.
Obviamente que contestei o enunciado e libertei-me.
O problema agora era outro: como é que podia revoltar-me contra uma professora que nos deixava pensar? Que nos incitava a isso ? Que nos puxava para fora da infância intelectual? A revolução parecia condenada.
O que eu não sabia é que a revolução agora era outra e que a partir daí eu nunca mais seria igual. Que de cada vez que eu entrasse na sala de aula devia estar preparado para uma luta de esgrima. Porque foi o que aconteceu. Durante aqueles três anos, a aula de Filosofia era um duelo. Com debate até ao fim. Sem limite (excepto o das horas). Com pontos de interrogação a romperem-nos no meio da testa, fazendo ruir todas as certezas do nosso pequeno edifício pessoal. Interpelados a duvidarmos até de nós próprios. Até ao ponto de, chamado ao quadro, e quando já só pensava em fechar uma discussão, ainda ter que a ouvir: "Não, André, contra factos, há ARGUMENTOS !" E eu a desmoronar-me todo por dentro.
A construção passaria a ser feita à luz da secretária. Com os autores que passámos a ler. Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Hegel, Feuerbach, Kierkegaard. E com os livros que me recomendava. 'Assim falava Zaratustra' (no comboio para Oeiras), 'Fundamentação da Metafísica dos Costumes' (onde quer que tenha sido), ou outros de Bertrand Russell e de Ortega y Gasset. Com os textos complicados e que demoravam a entender. Prateleiras carregadas de frases e conceitos que exumávamos mas que só agora tenho maturidade para compreender na totalidade. Que eram ondas gigantes em que mergulhávamos. À procura de mais oxigénio.
2 + 2 não eram 4. Nunca mais seriam.
E tudo porque naquele dia tinha feito um desvio até à livraria do CCB para ir comprar o último do Lobo Antunes.
Tinha de lhe contar isto tudo, Professora Gamelas. Posso cumprimentá-la ?
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