quinta-feira, 31 de maio de 2012

O uivo de um lobo



Quando o quarto filho nasceu a mãe tinha completado trinta anos nesse mesmo mês. Como a produção não ficou por aqui passou o melhor tempo da vida dela às voltas com aquela gentinha toda, cinco loiros, de olhos claros, e um moreno, de cabelo preto. O primeiro, com oito ou nove meses, arranjou uma meningite: de repente febre muito alta e horas depois estava em coma. Foi um milagre, na verdadeira acepção da palavra, não ter morrido. Como lhe tomou o gosto iniciou uma tuberculose aos três anos: ainda se lembra da mãe a chorar porque ele não comia. Tornou a não morrer. Ainda antes da meningite, quando nasceu, ia matando a mãe com uma eclampsia. E depois, pelo resto da vida, foi-lhe acumulando os tormentos: apesar de uma precocidade que espantava a família era mau aluno, mal educado, estranho. Quase nada o interessava e não ligava a brinquedos. No liceu a mãe pedia para o sentarem na primeira fila porque passava o tempo, ao que parece, a olhar pela janela. Detestava as lições, os professores, o ensino. Entrou para a faculdade e não ia às aulas: escrevia o tempo inteiro, ou passava tardes estendido na cama a observar o tecto. Continua a escrever o tempo inteiro, continua a observar o tecto. A vida dele foi sempre um rebuliço de cataclismos interiores, angústias, aflições, um sofrimento contido e, com o passar dos anos, foi falando cada vez menos. No meu entender em lugar de coração tinha um sismógrafo que reagia com intensidade desmedida à menor tremura de fora ou de dentro. Que eu saiba não parou de escrever.

Os irmãos, embora muito diferentes e diferentes uns dos outros, eram bastante mais parecidos do que, à primeira vista, se podia imaginar. E existia entre eles uma união muito mais profunda do que, também à primeira vista, se supunha, debaixo do pudor e da cerimónia com que se relacionavam.

- Vocês têm uma ligação fortíssima

dizia, ao primeiro, um amigo dele que também escrevia.


- Vocês têm uma ligação fortíssima

dizia, ao primeiro, um amigo dele que lia. Esses amigos chamavam-se José Cardoso Pires e Ernesto Melo Antunes e o primeiro amou-os até ao fim das suas vidas demasiado curtas, e continua a amá-los. A ausência deles é uma chaga aberta, a doer.


- É para te dar os parabéns porque ganhei um prémio


telefonou-lhe uma vez José Cardoso Pires, que ficou amigo também do segundo irmão, que foi para o Zé de uma delicadeza de alma comovente e esta frase


- É para te dar os parabéns porque ganhei um prémio


é a maior declaração de amorzade que o primeiro alguma vez recebeu. O segundo amigo, Ernesto Melo Antunes, tornou-se, rapidamente, querido de quase todos os outros. Algumas vezes os irmãos adoeciam colectivamente dessa doença, a amorzade, como, em crianças, de gripe ou papeira mas, claro, não se falava nisso. Para quê? Saint-Ex dizia que se devia gostar das pessoas sem lhes dizer porque elas sabem. De modo que os irmãos sofriam das mesmas chagas sob vários aspectos. E o segundo, que escondia uma bondade de criança sob o que alguns consideravam, injustamente, um temperamento arrogante, auxiliou-o na doença de outros amigos, um que fazia versos, chamado Alexandre O'Neill, outro que pintava, chamado Júlio Pomar, assim de repente lembrava-se desses dois. O primeiro tinha a tendência de partilhar a alma com criaturas que sofriam da mesma sina que ele, e que passavam o tempo a construírem nuvens de papel com coisas escritas ou desenhadas no meio. Os bichos da mesma espécie em regra procuram-se. Os irmãos faziam outras coisas, mais úteis, e o primeiro achava que a actividade de cada um deles complementava a dos outros. Encontravam-se para jantar uma vez por semana, em casa dos pais, onde a capacidade de comunicação, não verbal, o princípio de vasos comunicantes que mantinham, os unia de uma maneira sui generis. Se não estavam de acordo percebia-se na mudança de clima do silêncio, os elogios eram mudos, os acordos sem necessidade de explicação, as diferenças aceites. Penso que lhes agradava que a relação fosse assim e, em caso de necessidade, defendiam-se uns aos outros numa ferocidade de matilha. Os filhos deles repetiam esta relação numa fraternidade endogâmica. Era uma tribu fechada, com as suas regras estritas e a sua Constituição própria, escrupulosamente respeitada. O pai fora um solitário, a mãe não os estragara com mimos. A seu modo, em todos eles havia uma boa parcela de solidão e uma distância que, paradoxalmente, facilitava a proximidade, às vezes mascarada de indiferença. Sequiosos de ternura, quase sempre recusavam recebê-la. Falhas de muito amor em crianças, faziam os possíveis por não o demonstrar e, se o amor aparecia, era de forma oblíqua, disfarçada. No entanto, mal tocava a fogo, uniam-se todos, com o arzinho casual de quem se juntou por acaso. Quando o pai morreu os irmãos pediram ao primeiro que dissesse em voz alta um soneto de Antero, ali, diante do caixão. À medida que os versos se iam sucedendo o primeiro pensava


- Somos uma família, somos uma família, somos uma família


embora a relação com o pai fosse, para alguns, complexa e difícil. Para quase todos complexa e difícil, para quase todos, em certas áreas, dolorosa. Mas eram uma família e o pai, claro, fazia parte dela. Mesmo debaixo da terra fazia parte dela. Eram, realmente, uma família. Isto foi escrito assim, ao correr da esferográfica: algumas notas acerca de criaturas que, por acaso, conheço. Não vou dizer o nome, é lógico. Uma família que não tem nome neste texto mas da qual não me desagradaria completamente fazer parte.

António Lobo Antunes, "Crónica Inventada", na 'Visão'

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