quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ir à faca


Seis da manhã. Diz o despertador. 
Noite mal dormida. Não dormida. Voltas e mais voltas. Raios me partam. Perna fora da cama para o inchaço não aumentar. Está do tamanho de uma bola de ténis. Dores. Muitas. Tenho um cão agarrado à barriga da perna. A morder. Está danado. Deve ser um pitbull. Já percebi que isto não vai lá com comprimidos, creminhos, mezinhas e festinhas. Foda-se ! Não aguento mais. O coração está na perna. Salta. Quente como infectado. Mas não tenho febre. Então não deve ser pus. Mas é uma bola de ténis. De sangue coagulado. Um trombo. O meu pai vem-me apanhar às oito e meia. Deve levar-me à Clínica. Mas porque é que duas horas são tão lentas ? Passam como lesmas. Moles e inúteis.
A buzina lá fora. Não aguento mais, pai. Isto tem que ser lancetado. Põe-me alguém a tratar disto. Estás a enganar-te no caminho.
Vou distraído, filho. Ando a ler um livro engraçado. Comprei no aeroporto de Hong Kong enquanto esperava o avião.
Era para ali. Para a direita.
Não, agora não era. Chatice, filho, hoje o passeio está todo ocupado. Espera, há ali um sítio à cunha. Ninguém pensa nos outros.
Vá deixa-me sair.
(balcão, nome, data de nascimento, cartões, explicações)
Clínico geral temos.
Qualquer coisa. Preciso é que me vejam a perna já e façam qualquer coisa. Dêem um tiro no cão.
Qual cão ?
O que morde. Tenho que me sentar. Aquela cadeira de rodas é para mim.
Ortopedista já cá está, mas consulta só daqui a uma hora.
Quer que eu caia para o lado. Olhe que ele não me larga a perna.
Faça lá um jeito que o meu filho precisa mesmo de ser visto.
Primeira porta do gabinete do lado direito.
Eh, pá ! Como é que fez isso ?
Já disse noutro lado que não fui eu. Foi um tipo. Dos Alheiras. A outra equipa.
Mas deu-lhe um pontapé na perna ?
Acho que foi canela.
Não, isso foi um biqueiro. Em cheio. Vocês têm de jogar com mais calma. Isso não é de amigo.
Mais calma ? Mas faz-se o quê quando um comboio nos cai em cima ?
... E já não sai daqui. Isso nunca seria absorvido. Vai ser drenado. Já. Vou-lhe abrir isso. E deitar tudo cá para fora. Senhora Enfermeira, prepare essa marquesa. Vamos fazer uma cirurgia. Já. Deite-se ali. E vai a frio. Não tenho anestesia, nem whisky. Como se estivesse na guerra.
Ok. Aguento. 
Senhora Enfermeira, arranje-me aí um canivete e betadine. Não olhe, pá.
Não olho.
Estique-se todo para trás.
Porra !
Desculpe.
Porra.
Desculpe. Tráaa, tráaaa, tráaaaaa.
Nem sabe o que saiu.
Deixe ver. Grande merda. Filho da mãe.

Desta vez lembro-me dos últimos golos.

1 comentário:

  1. Esta de querer encontrar coisas e factos notáveis da vida para falar deles, é história. Prova: Isto que acabo de ler, onde até se sente a dor do biqueirão e também a do pai do autor na distracção com que o conduz, é um pequeno fasto de um dia nefasto, mas é deles que se alimenta a vida e a arte.
    De alguém assim sensível ninguém se importaria de ser taxista ou muleta, como a vespa do post de 8 Out. em "mamma Roma". Bem esgalhada!
    PS.E aquela do médico a fazer-se a futuro querela à borla!
    Vulpes/Húli

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