terça-feira, 7 de setembro de 2010

Voodoo Jazz

Quando há 40 anos teve lugar aquele que foi o maior festival de música de sempre (pelo menos em assistência), muitos são capazes de ter estranhado um nome no meio de grandes bandas de rock e folk do momento que iam actuar. No cartaz estava Miles Davis.
No Festival de Isle of Wight de 1970 - aquele que superou as 500.000 pessoas de Woodstock do ano anterior - figuravam, entre outros, Jimi Hendrix, os The Who, os Doors, os Emerson, Lake & Palmer, os Moody Blues, Jehtro Tull, e artistas como Joni Mitchell, Richie Havens, John Sebastian e Leonard Cohen (numa mítica actuação pela madrugada fora, arrastado para um palco para acalmar o motim que tinha começado entre o público). O Verão do Amor de '69 tinha terminado, aliás como o Festival de Altamont,  organizado pelos Rolling Stones em Dezembro desse ano, tinha tristemente anunciado, com um tipo esfaqueado a escassos metros de Jagger e Richards.
Mas em Isle of Wight aparecia também  o maior nome do Jazz de todos os tempos: Miles Davis. Ele que já andava a sacudir o jazz (clássico) das costas há algum tempo, especialmente a partir do ano anterior quando começou as gravações do álbum "Bitches Brew". Um álbum que ficou para a história. Uma história que começa logo na magnífica capa do disco com uma pintura encomendada a um amigo e que revela o seu caminho: uma odisseia experimental e emancipatória afro-espacial da era do Aquário.

Chamaram-lhe de tudo: jazz-rock, jazz-fusão, jazz-psicadélico, jazz-avantgarde, tudo-menos-jazz. Para Duke Ellington, Miles era o "Picasso do jazz".
Jack Dejohnette definiu-o de outro modo. Que Miles estava numa crise de meia-idade. Tinha 40 anos e estava farto de tocar em clubes nocturnos para gente de 50 e 60 anos. Tinha namoradas 20 anos mais novas que ele e queria ser relevante outra vez, conta a revista 'Uncut' de Agosto. E estava pronto para criar e revolucionar a música. "Tenho de mudar constantemente. É uma maldição." 
Miles Davis estava na vanguarda da música. Disso não há dúvida. E contava ao seu lado com nomes enormes e que se fizeram maiores ainda: Wayne Shorter, Chick Corea, Keith Jarrett (ao vivo), John McLaughlin (que teve direito a um tema no disco com o seu nome), Dave Holland ou Don Alias, tudo músicos que, sentados num semi-círculo, o veneravam e obedeciam ao trompete mágico e hipnótico que se erguia sobre eles. Sem saber ao que iam.
Chick Corea, um fanático do som límpido e cristalino do piano clássico, e a quem Miles tinha posto a tocar um órgão eléctrico, perguntou-lhe o que devia fazer para lhe retirar o seu som "lamacento". Miles respondeu: "Não toques."
A John McLaughlin disse no início das sessões que tinha que tocar guitarra como se não soubesse tocar guitarra.
As influências psicadélicas e technicolor são notórias.
Miles estava definitvamente apaixonado por Jimi Hendrix, de quem se tornou amigo, e pela forma como este "iletrado" da música extraía sons avançados e inacreditáveis da guitarra eléctrica. "How the fuck is he doing this?". E depois mandava-lhe pautas com ideias novas que Jimi, que também o admirava e respeitava imenso, devolvia por não saber ler.
Miles estava convencido que podia montar a maior banda de rock & roll que alguém já tinha ouvido e recheou o disco com todas as técnicas mais avançadas do estúdio enquanto instrumento musical, criando loops, efeitos e distorções sonoras até chegar à ideia do que queria. Um disco que viria a influenciar gerações e gerações de músicos de jazz, rock ou outros habitats.
E foi assim, num ambiente esfuseante de improviso, que Miles e o seu grupo de pioneiros subiu ao palco em Agosto de 1970. "Se acham o disco estranho, não sabem como era louco ouvirem-nos ao vivo." (Dave Holland). 
Num registo de sonho complexo, mas, acima de tudo, introduzindo-nos a todos num mundo fantástico: "Bitches Brew", agora reeditado, é obrigatório.


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